Meu apocalipse favorito
On May 23, 2023 | 0 Comments

Todo dia ao acordar, a primeira coisa que faço é enfrentar o apocalipse. Depois é só se levantar, passear as cachorras e sobreviver o resto do dia.

Eu sempre gostei de escrever pela manhã. Sempre foi meu horário mais produtivo e eu nunca me importei de acordar cedo para ganhar alguns minutinhos de silêncio enquanto o mundo não acorda. É um horário em que os problemas continuam sonolentos, onde as mensagens ainda se arrastam, um tempo em que as pessoas te deixam em paz, para rolar para o lado por mais cinco minutinhos. É perfeito.

Meu apocalipse favorito é uma espécie de manhã. O mundo vazio e meio frio, onde nenhuma expectativa te aguarda para o restante do dia. A Névoa, de Stephen King; Nihil de Carolina Mancini; A Estrada, de Cormac McCarthy; entre outros. O que me faz questionar que tipo de pessoa tem um apocalipse favorito.

O verdadeiro significado de “Apocalipse” é Revelação. O último livro da bíblia, são as revelações do profeta João sobre o que seria o fim do dos tempos, e daí veio a confusão entre os termos, que tornou a palavra assustadora, quando, na verdade, todos os dias milhares de pessoas organizam Chás Apocalípticos ao redor do mundo, com maneiras constrangedoras, socialmente questionáveis e às vezes ambientalmente criminosas de anunciar ao mundo o sexo biológico de uma criança não nascida. Sim, estou falando de Chá Revelação. Os humanos são estranhos.

teachings in silence

Tenho vivido meu próprio apocalipse. Tenho vivido nele a tanto tempo que consigo ouvir as nuvens se chocando acima da minha cabeça, a névoa deslizando sob meus pés e posso dizer que algo mudou.

Não parecia nada sério no momento, apenas algumas mudanças de hábito, alguns ajustes de rotina, alguns afazeres que tinham ficado pela metade e agora precisavam ser feitos, mas logo ganharam corpo, se espalharam como raízes pelo chão, logo se tornando imprevisíveis. Tenho uma surpresa nova a cada dia. Tudo ao meu redor parece oscilar e se transformar e eu vou me construindo de novo a cada dia, enquanto estou descobrindo quem sou também.

Às vezes é bastante doloroso, mas tem sido proveitoso abrir essa caixa de fios e começar a colocar tudo no lugar. Existe certa frustração por não saber onde certas coisas se encaixam, mas tão logo encontro o seu lugar, estou animado para fazer o mesmo com a próxima e assim vou mudando hábitos, móveis, rotinas, pensamentos.

Uma amiga entrou na minha casa e me disse, esses dias, que ela já não parecia mais a mesma, como de fato, visualmente, pouquíssima coisa mudou. A disposição de uns móveis da cozinha sendo as mais óbvias. O que mudou, na verdade, foi minha relação com a minha casa.

Quando me mudei para cá, no meio da pandemia, o fiz do jeito que pude no meio de uma crise. Vivi meses no modo sobrevivência, embora houvesse conforto o suficiente, não havia certeza no futuro, então bastava me preocupar com o hoje.

Demorou uns meses para começar a habitar essa casa, entendê-la como parte da minha construção. Ninguém no Brasil sabia o que viria, com as pessoas morrendo sem ar sob o júbilo de um governo genocida, mas, além disso, eu estava em um relacionamento estável e bastante tranquilo que me fazia questionar quais seriam os próximos passos e quais seriam as próximas mudanças.

Quando a pandemia finalmente deu uma trégua, eu já não precisava me preocupar com isso. Muita coisa tinha mudado, inclusive meu status de relacionamento.

De volta ao caos, de volta ao improviso, de volta as coisas feitas pela metade, pois eu não sabia se continuava minha vida, ou simplesmente partia pela Estrada com duas cachorrinhas num carrinho de supermercado, curtindo as aventuras deste mundão. E assim fui empurrando os probleminhas, procrastinando as coisas mais simples, fingindo não ver as rachaduras mais graves, acumulando cada vez mais louça, varrendo cada vez mais poeira para debaixo do tapete. Até tudo explodir e ser impossível ignorar.

O que minha amiga viu quando entrou na minha casa não foi o fogão que mudou de lugar, foi minha a minha escolha de ficar. Quando me decidi que era aqui que queria viver, passei a tratar essa casa como lar e foi isso que ela enxergou, embora fosse algo difícil de se ver.

O que era incerto, vai se tornando permanente. A casa vai perdendo o ar de improviso e ganhando projeto de longo prazo e com a casa e o mesmo processo está acontecendo comigo.

Nesse processo de caos e mudanças, tenho as manhãs como meus momentos de silêncio. É aqui que tenho vindo ouvir meus pensamentos e escrever sobre eles e muitas vezes descobri-los enquanto os escrevo, como estou fazendo agora. É por isso que as manhãs são meu apocalipse favorito.


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