Um pequeno túmulo pagão
On August 8, 2023 | 0 Comments

Todos os dias pela manhã passo ao largo de um pequeno córrego. Não um daqueles com cheiro de água parada e fezes, embora não aposte minha saúde bebendo dele, mas um canal construído com pedras e musgo, que abriga duas ou três vezes por ano a visita de garças. Poucos metros de uma paisagem bastante tranquila, cruzada por uma pequena ponte de madeira e aço.

O espaço forma uma espécie de jardim, em parte mantida pelos alunos de uma escola próxima, o que rende pequenas placas com curiosidades sobre os rios e as plantas espalhadas ali ao lado. Um trechinho bonito de uma cidade feia. Não por menos um dos meus favoritos do meu passeio matinal com as cachorras.

Por uns instantes dá para esquecer que estamos em uma das maiores cidades do mundo, mas a ilusão dura pouco. Logo surgem os sacos de lixo rasgados pelo chão, as latas de fezes encolhidas no canto, os fios de cobre pela metade que ficaram do último saque.

E os estranhos sagrados que se perderam pelo caminho.

Dizem que quando os romanos conquistavam outros povos, eles traziam os deuses estrangeiros para Roma, onde eram deixados em um templo em sinal de respeito. Não sei se é verdade, e nem sempre a verdade é o suficiente; gosto desta história e isso me basta, pois nela cabe também essa minha versão do jardim na beira do córrego, por onde encontro os pequenos atos de fé:

Santos católicos, oferendas aos orixás; um buda; pinos de malabarismo; vasos de plantas que um dia foram tratados como filhos; uma muleta descansando no banco sem o seu manco.

Como se naquele pequeno jardim bucólico as pessoas encontrassem paz para guardar ou abandonar com respeito os seus pequenos objetos sagrados que minhas cachorras em sua curiosidade natural acabam sempre por descobrir e às vezes profanar com urina e má vontade.

Hoje elas vasculhavam um túmulo. Não uma cova feita as pressas para esconder um cadáver malcheiroso cujo outro destino fosse o incinerador ou o saco de lixo, mas um tumulo de pequenas pedras empilhadas, com uma lápide feita com galhos enfileirados. Um trabalho que levou tempo e algum esforço, que me chamou a atenção por não ter sido marcada por uma cruz, como era de supor. Um templo pagão, para um corpo não maior do que um pássaro ou um peixinho dourado.

Assim como as duas cachorras, também tive curiosidade em saber que segredos guardavam aquelas pequenas pedras, mas ao contrário delas não tinha nenhuma intenção de profaná-las, exceto com a minha imaginação.

Diversas histórias se passavam em minha cabeça e todas eram reais. A morte de um peixinho de aquário; o filhote de um pássaro jogado da árvore pelo cuco. O dedinho magro de um perjuro. Um soldado de plástico amassado por descuido; um anel de noivado do traído ou traidor. A última vítima da guerra das fadas. Um beijo roubado. Um suspiro caído. Os dentes apodrecidos pelas palavras de um racista.

Tudo aquilo que a terra oculta, guarda e consome para tornar-se novo. Do pó ao pó. Das trevas à luz. Do chão ao céu.

Não sei o quanto acredito no além-vida, em punição ou recompensa, mas acredito no ciclo das coisas, do material ao material, e hoje acordei com pensamentos sobre o tempo que temos e o que deixamos depois que ele se acaba.

Gosto de pensar que quando minha vez chegar, vou deixar para trás histórias mais valiosas do que as minhas posses. Espero que meus amigos tenham sempre coisas engraçadas para lembrar e que possam revirar meu baú de contos incompletos em busca de algo que não tenham lido antes. O resto, o dinheiro e as dívidas, os móveis e as roupas, os eletrônicos e os livros, que se torne combustível para a pira, cerveja para a celebração, carne e frutas para a ceia. Moedas para os músicos e doces para as crianças.

Quando a festa acabar, dos lenços assoados, restos de comida e garrafas vazias, espero que sobre apenas o suficiente para ser incinerado e enterrado na beira de um córrego, em um pequeno túmulo sem cruz, feito de pequenas pedras empilhadas. Cada qual uma história. Pequeno altar sagrado, onde os cães poderão urinar.


Gostou deste texto? Assine a Gazeta Ordinária, e não perca nenhum outro.

Processando o texto
Parabéns! Você está inscrito!

Leave a Reply

More news