Sempre gostei de portas. Sempre as encarei de forma meio mística, mesmo as mais mundanas. Passagens entre ambientes, isolamento entre forças. Sou um sincero admirador de portas, chaves, passagens e todas as simbologias que elas impõem em nosso caminho.
A porta da frente da minha casa parou de emperrar. Era um aborrecimento constante que eu vinha pensando em como resolver sozinho. A casa é antiga, a porta azul com vidrinho no centro é tão antiga quanto e o tempo fez o seu trabalho nela, nos batentes, na parede e no chão de taco onde a calha furada manteve umidade por sabe-se lá quantos anos. Quando resolvi a calha, resolvi o problema da porta. Não foi de propósito.
Ainda oscilando entre períodos de sonos bons e ruins, às vezes passo o tempo na madrugada organizando as coisas que ainda precisam ser feitas dentro e fora de casa, tentando achar uma ordem que faça sentido, já que não dá para fazer tudo ao mesmo tempo. Já dá para pintar? Posso jogar fora? Esse móvel ninguém vai querer? Será que vale a pena refazer esse rodapé? Dava para esconder uns fios…
O resultado é uma série de anúncios com itens variados. Servidores de 50T. Sementes de Girassol. Metadona. Cinto elástico. Monitor 27”. Isqueiro. Porta. Software de pareamento de dados. Caixa contêiner. Telhas. Suporte de Telhas. Parafuso de suporte de telhas. Suporte de telhas. Porta. Camiseta Lisa. Mel de Jataí. Porta.
De onde estou escrevendo agora consigo ver a cozinha em uma linha reta, passando por outros três ambientes. A casa é uma tripa de caixinhas, que vai do quarto, escritório, sala, cozinha e termina no banheiro. Nada cômodo de madrugada, mas nenhum fim do mundo. Gosto de ver a casa toda e acho bonito quando da sala consigo ver a janela do quarto aberta om a jabuticabeira balançando despreocupada.
Entre os quatro ambientes, uma porta-celeiro de correr consegue cortar a casa na metade. Quarto e escritório para um lado, sala e cozinha para o outro. É o máximo que se tem em privacidade, o que está tudo bem, já que eu vivo sozinho.
Eu raramente fecho a porta do quintal. Ela fica aberta para as cachorras se aliviarem de madrugada. As manhãs são quase sempre frias, mas com as telhas novas é gostoso ver o sol avançando para dentro de casa pela manhã. Ouço as patinhas me procurando para o passeio que logo vem, os pássaros começando as discussões matinais, batendo por frutinhas.
Uma das primeiras casas em que vivi também não tinha muitas portas. Sempre fomos uma família simples e nos mudamos o suficiente para ter uma mala leve, poucos móveis e a adaptar o que tiver a mão, ao invés de gastar para pôr outra coisa no lugar.
Nessa casa de quarta sala e cozinha, eu e minha irmã dormíamos na sala. Enquanto meus pais dividiam o quarto com o pequeno recém-nascido que berrava ao mundo de madrugada. Não tenho muitas lembranças destes anos, só uma mistura confusa de assombrações, brigas no quintal, disputas pela televisão, pula-pulas no sofá e uma proibição jamais verbalizada de entrar pela porta do quarto.
Entre o meu quarto e o escritório hoje, tudo o que resta são os destroços de uma porta-camarão. São só ossos de plástico retorcidos. Ruínas de uma civilização a muito esquecida, que mantive em respeito a deuses que não sei o nome e no fim só servem para fazer barulho, ocupar espaço e juntar teias de aranha que o aspirador automático não consegue alcançar. Daqueles itens que já estavam na casa e meus pais me ensinaram a manter, ao invés de gastar.
Acordei de madrugada com o dedo sobre o anúncio de uma porta. De todas as portas que já tinha visto, aquela era a mais simpática. Tinha cara de celeiro, o que combinava com o resto da casa e estava em um preço excelente, o que não escandalizaria a família humilde que aprendeu a viver com o suficiente. Era a porta perfeita para o meu quarto. Terminei de apertar o anúncio, entrei no link, completei o cadastro, voltei a dormir.
Faz alguns dias e esqueci que tinha comprado uma porta.
Hoje recebi uma mensagem avisando que minha porta iria chegar. Precisei respirar um pouco e pensar sobre o assunto, desconcertado de que não havia sido sonho.
Tenho tentado não me recriminar por essas coisas estranhas que estou fazendo, tentando entender onde meu inconsciente está tentando me levar e acho interessante que entre o sono e a realidade eu havia realmente comprado uma porta. O simbolismo disso para uma pessoa que anda sofrendo com insônia dava uma sessão de terapia.
Ou uma crônica leve antes do café da manhã. People are strange.
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