Da janela do meu escritório eu assisto às formigas caminhando pelos galhos do jasmim.
Faz umas semanas que reparei na trilha de formigas-cortadeiras escanteada no quintal, carregando nacos de folhas verdes. Fiz o possível para ignorar o problema, como tenho feito o possível para ignorar todos os problemas que andam me perseguindo. É mais simples fingir que as coisas não estão acontecendo, mesmo quando a trilha de sinais atravessa seu caminho como uma tropa bem treinada. Mais fácil ignorar o monte que vai se acumulando como uma mancha marrom no meio do quintal. Eu optei pelo mais fácil em uma vida que já anda bastante complicada.
Ignorar não resolve o problema. As formigas que devoravam o jasmim, logo encontraram o caminho para dentro de casa e passaram a subir em minhas pernas quando eu andava concentrado, interrompendo o meu trabalho. Eu sacudia as pernas e as jogava no chão, onde se espalhavam desesperadamente como vítimas de uma besta lovecraftiana. Um terror inominável na linguagem das formigas e que só poderia significar a destruição completa. Eu queria que elas fossem embora e tentava me convencer de que um dia desapareceriam sem nenhum aviso, devolvendo meu jardim à sua rotina. Meu pequeno pedaço do paraíso expurgado do seu pecado original.
Em um gesto de raiva, um dia resolvi acabar com tudo e usei a mangueira para inundar o formigueiro. Vi seus montes derreterem e se esfacelarem, enquanto um grupo de operárias confusas tentava entender o que estava acontecendo, ainda com o butim em suas costas. Coloquei mais pressão na água, fazendo o jato penetrar mais fundo, destruindo corredores e câmaras, no fútil desejo de encerrar de uma vez aquela disputa. Eu, um humano, contra pequenos insetos incômodos que tiveram a ousadia de existir no mesmo tempo e espaço. Vi a água se empoçar sobre o que antes era uma estrutura seca e depois transbordar, levando restos e cadáveres pelo rio que se formou em direção à rua. Fiquei ali naquele processo genocida por alguns minutos, imaginando o caos e o terror se espalhando entre os insetos enquanto tentava acalmar minha consciência que gritava para que eu parasse com aquilo e as deixasse em paz.
Minutos depois, olhei com asco para minha obra de arte. Todo um império tinha sido reduzido a uma poça de água barrenta, que espiralava engolida pela terra.
Sem nenhum orgulho, recolhi minhas armas e voltei para dentro de casa.
Naquela noite tive pesadelos com enchentes e multidões em desespero e percebi que às vezes Deus tenta nos matar só porque compartilhamos o mesmo jardim. Seu desejo genocida, assim como o meu, não tinha ódio, apenas um profundo senso prático, enquanto tentávamos subir em suas pernas.
No dia seguinte, acordei com a consciência pesada e só me repetia que fiz o necessário, mas quando fui fazer minha caminhada com minhas cachorras, vi que o formigueiro estava de pé novamente, praticamente completo. Todo o meu poder divino tinha sido sobrepujado em praticamente uma noite e lá estava aquele povo castigado, reabrindo seus túneis e preenchendo-os com os espólios arrancados cirurgicamente de meu jardim. Como Deus punitivo, eu tinha fracassado. E sorri.
A segunda praga que preparei para esse povo amaldiçoado foi veneno. Fiz a encomenda da minha arma de destruição em massa em um site online e ela chegou no mesmo dia, por R$ 10,90. A rotulagem do veneno era cheia de avisos sobre a manipulação, o que dava mais formalidade ao que estava prestes a fazer.
Imagens de um grande campo de concentração de formigas, agonizando em uma baba esverdeada, preenchiam minha imaginação e eu pesava os 400grs de danação em minhas mãos que em breve dariam fim à toda uma civilização. “Agora me tornei Morte, o destruidor de mundos.”
O veneno e minhas intenções ficaram de lado faz alguns dias. Às vezes passo pelo pacote de formicida e repito para mim que são apenas formigas. Uma praga. Problemas em marcha, devastando o paraíso em uma ordeira fila indiana. Parece idiota, eu sei, mas ainda não tomei coragem de fazer o que é preciso. Da minha janela agora, eu vejo um galho completamente devorado do jasmim, carregado para baixo por uma fileira de pontinhos negros, cada qual com seu pedaço. Gostaria que elas desaparecessem se eu as ignorasse. Então eu fecho as cortinas.
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