Hoje eu vou escrever. Já deixei tudo pronto. Tem papel a vontade, umas ideias anotadas. Nenhum compromisso na agenda. É só sentar e escrever.
Faz tempo que não escrevo. Sei lá, sem motivo. As coisas foram parando. Rareando. Sumindo do dia-a-dia, como um namoro perdido da qual já não se fala mais. Não, isso é outra coisa. Não vou perder o foco.
Será que a gente esquece de como se escreve? Dá para esquecer tanta coisa. Eu falava inglês com bastante tranquilidade antes. Também sabia pintar com tinta acrílica, aquarela e guache. Não sei fazer mais nenhuma dessas coisas, ou pelo menos acho que não. E se eu começar e descobrir que não sei mais?
Não. Escrever é tipo andar de bicicleta. Merda. Isso é um clichê. Talvez eu tenha mesmo esquecido como se escreve. E daí, o que resta? Tem trabalho. Uns rabiscos. Minhas cachorras. Tempo livre olhando por nada e esperando a nuvem cruzar a janela em uma corrida de lesmas que só eu vejo. Não escrever não é opção. Então hoje eu vou escrever, eu sinto. Estou pronto. Tem esse troço na minha garganta que já virou uma tosse, me sufocando por dias. Vou pigarrear isso para fora e tudo vai ficar bem de novo. As coisas vão fazer sentido e eu vou me lembrar do que importa, de quem eu sou, do que ainda dá para fazer com os próximos anos. Sou jovem. Pelo menos um tanto. Ainda dá para escrever muito e hoje eu começo.
Assim que terminar meu café, vou sentar a bunda no computador e só saio de lá com duas mil palavras. A merda é que acabou o gás. Tudo bem, tenho outro botijão. Aproveito e já dou uma olhada na mangueira para ver se encontro o vazamento. Uma merda ter que fechar o gás toda noite, com medo de explosão. Coisa feia, quando acontece. Fora o risco de envenenamento, não é? Melhor resolver logo, depois faço o café e aí eu escrevo. Preciso parar de adiar as coisas. Tenho essa péssima mania de deixar tudo chegar no limite do suportável. O limite do suportável do gás vai ser o quê? Sufocamento ou explosão? Isso não está certo.
Para mexer na mangueira precisa tirar o fogão do lugar. Olha a sujeira que está aí atrás. Será que é por isso que tem tanta formiga? Meu deus! Que nojento! Ainda bem que vi isso agora. Que vergonha! Se a casa é um espelho da gente, eu estou um bagaço. Eu sei que não estou bem quando deixo de lado o básico, paro de cozinhar, acumulo as roupas pelos cantos. Não quero falar com ninguém. Sei que não estou bem faz tempo. Tempo demais, mas nada justifica essa sujeira. Não tem desculpa, preciso limpar. Aproveito e já limpo atrás da geladeira, também. É tudo lado a lado. Só arrastar ela do lugar. Depois de limpo é colocar tudo no lugar, preparar meu café e escrever pelo menos mil palavras, para aquecer, mais tarde outras mil. Sei que dá. O dia tá livre e ainda é cedo.
A geladeira ficaria melhor no lugar do fogão. O fogão podia ficar ao lado da porta. Daí eu podia abrir um buraco na parede e passar a mangueira para o quintal. Botijão do lado de fora é mais seguro. Também é mais fácil de trocar. Só que vai comer um espaço da pia. Será que é muito espaço? Não se se eu gosto. Fico meio torto, me incomoda, mas tudo faz sentido. Precisava de uma segunda opinião, para quem eu ligo? Não sei. Vou deixar assim. Ver se me acostumo. Se é tão ruim mesmo ou é só essa dificuldade de aceitar as mudanças. Talvez seja bom, mas a tomada não alcança. Preciso comprar uma extensão, o fogão eu ligo com fósforo. Não, não é um problema. Acho que ficou bom. Vai dar para fazer o café olhando o céu da porta. A fumaça também vai embora mais fácil. Acho que vai ficar bom. Só limpar tudo, deixar tudo no lugar, preparar o café e depois escrever. Vai ficar melhor assim.
Preciso escrever a próxima gazeta, ou talvez seja caso de retomar a crônica de segunda. O ideal seria fazer os dois ou quem sabe voltar para Jhomm Krulgar e descobrir se desta vez ele escapa. Não sei não. Se ele morrer neste livro, talvez seja melhor. Cara, enchi quase um saco de poeira, parecia terra. Espalhou pela cozinha inteira. Vou ligar o aspirador e deixar trabalhando enquanto faço café. Só uma varrida para fora, para não perder muito tempo. Aliás, uma vassoura rápida no quintal. Dois minutos. Aproveitar que fez sol. O cimento já tá todo verde por causa das chuvas. Escorregadio. Parece limo mesmo. Vou meter um sabãozinho e esfregar para ver se sai. Se sair é melhor lavar o quintal e já que está abrindo sol, as cachorras precisam tomar banho. A Meg tá com cheiro de chulé. A medicação fez ela vomitar, tadinha. Eu limpei, mas tive medo de dar banho devido à ferida. Faz dez dias que a gente troca o curativo duas vezes ao dia. Limpeza, antibiótico, cicatrizante, omeprazol. Colar da vergonha. Olhos de tristeza e a mesma catinga do sapato do meu tio bolsonarista. É muita humilhação. Ela gosta de banho. Não dá trabalho nenhum. Certeza de que vai se sentir melhor depois. Melhor resolver isso agora antes que chova e aí vou enrolar por mais uma semana. A rotina de São Paulo se adapta as águas da chuva. São elas quem controlam o fluxo da cidade. Os espaços e o tempo. Tem temperamento imprevisível e furioso e não existe o que fazer, exceto aceitar. Então aceito que vou ter que dar banho nas cachorras, lavar o quintal, preparar meu café e começar a escrever.
Dá bem certo. Elas ficam felizes. Provavelmente nem elas estavam suportando o cheiro mais. Cheiro é um troço que muda o humor da gente. Que nem o cheiro do banheiro. Ontem eu trouxe para casa uns galhinhos de eucalipto, pendurei no chuveiro e com o vapor o banheiro todo fica com cheiro de chácara. Faz eu me lembrar de quando era moleque. De ficar trepado nas árvores, ou deitado no chão vendo o vendo balançar as folhas cumpridas de um lado para o outro feito rabiola de pipa. Era gostoso ser moleque, eu ainda me lembro e lembro também do meu avô sempre de cabeça baixa mexendo na terra, com o cigarro nos lábios. A brasa de um acendendo a brasa do outro, desde que tinha seis anos, até a tampa do seu caixão.
Não sei como resolvi lavar o banheiro, mas era uma necessidade. Era a única tarefa com água que eu não havia feito e o piso branco estava olhando para mim com olhos de nojo. Lavar o chão era coisa rápida. Eu termino e já tomo banho, casa limpa, alma lavada. Faço café, nenhuma preocupação além de escrever e me lembrar de que preciso comprar uma extensão e que se o fogão ficar ali naquele lugar, preciso chamar alguém para furar a parede e talvez alguém para instalar uma tomada. Isso depois do banho. Preciso anotar, para não esquecer. A água gelada me faz rir de alegria. Faz tempo que não rio por rir. É bom sinal. Sinal de que hoje as coisas mudaram. Olha o tanto de coisa que resolvi. Esse monte de entulho diário que fui largando para tropeçar na minha rotina. Lavar o banheiro reforçou o cheiro de eucalipto, de chácara, de infância. O banho foi ainda melhor. Talvez seja uma boa ideia escrever sobre isso. Já escrevi sobre aquele lugar tantas vezes. É difícil ter certeza de que vivi aquela vida. Tudo é tão diferente depois que a gente cresce. Eu estava pensando nisso enquanto limpava o machucado da Meg. Nas preocupações que eu dava quando era pequeno. Sempre cheio de machucado, ralado, cortado, roxo. Magro feito um esqueleto e preto o suficiente para tomar enquadro da polícia. Tanto tempo atrás, não sei se nada daquilo era verdade, mas sinto como se fosse. Uma vida antes da vida. Uma que era melhor, embora falar sobre isso nos faça ainda mais velhos. Terminei o banho satisfeito com tudo o que fiz. Não tinha nada programado, mas agora está feito e ainda é cedo. Vou tomar café, rapidinho e me sentar para escrever.
Acender o fogão com fósforo não é nenhum incômodo, lavar a louça na pia, porém, ficou esquisito. Desta vez eu lembrei de verificar se o ovo não estava podre. Alguns erros não precisam ser cometidos mais de uma vez. Tudo certo com o pão na chapa, o ovinho frito, falta o café e aí já posso escrever. A água já vai fervendo enquanto eu termino de cozinhar. Monto o prato, abro a geladeira. Tá um calor infernal lá fora. Hoje vai ser um daqueles dias quentes e com certeza vai chover, mas agora é tarde. Já lavei o quintal, o banheiro e as cachorras. Pode chover que eu estou preparado. O café desce bem tanto em dias de frio quanto nos de calor. Vasculho a geladeira. Dou uma olhada no freezer. Respiro e vou dar uma olhada na dispensa. Preciso arrumar esse armário um dia. Agora tem espaço na cozinha. Talvez mais um armário ajudasse. Encontro um pacote de canjica que não lembrava que tinha comprado e uma lata de ervilha com aparência mais do que suspeita. Tiro os dois para jogar fora. Depois do café, após escrever, eu penso em como organizar melhor isso. Tateio o fundo do armário, onde eu já não consigo enxergar, pensando no desperdício das coisas.
Fico na ponta do pé e pescoçando por cima dos pacotes mais altos, verifico o que ficou lá para trás. Me dou conta de que estou em negação. Conheço a resposta, só não gosto dela. Fecho o armário frustrado e olho para a água fervente no fogão fora do lugar. Meu ovo já ficou frio. Não tem café. Agora é só escrever.
There are no products |