Desde quando consigo me lembrar, eu quis ser escritor. Também quis ser astronauta, engenheiro, arqueólogo, ator e ladrão, mas estas opções vinham motivadas por alguma história que eu li e outra que gostaria de escrever. Acontece que, como sempre digo e vou ser obrigado a repetir, ser escritor no Brasil é uma tarefa abraçada pelos privilegiados e obsessivos. Os primeiros por não precisarem disso para nada, os segundos por precisarem disso para tudo. Não pertencendo ao primeiro grupo, já ficam claros os meus motivos para continuar escrevendo.
Escrevo desde sempre. Do momento em que fui alfabetizado até o momento em que escrevo esse texto, escrever foi minha única constante e bastou um pequeno período sem fazê-lo para me deixar doente. É impossível contabilizar quantas palavras escrevi ao longo da vida, entre as perdidas e as guardadas, milhões e não milhares, certamente, mas mesmo juntando volumes imensos de histórias, mesmo lotando disquetes, CDs e HDs com manuscritos, mesmo acumulando pastas e mais pastas com ideias, eu não me considerava um escritor.
Isso sempre me atormentou. Pensei precisar de uma faculdade para me tornar um escritor. Letras parecia muito científico, jornalismo, muito factual. Por falta de uma faculdade de escrita criativa escolhi estudar produção editorial. Foi o jeito que encontrei de permanecer perto das histórias, mas mesmo com todas as teorias, mesmo aprendendo as entranhas do processo, mesmo construindo o mundo de outros autores eu não me considerava um escritor.
Foi mais ou menos nesse momento que fiquei doente. Fui contaminado por alguém próximo, que me envenenou com suas boas intenções e me fez acreditar que eu não tinha o que precisava para ser um escritor, sendo assim, era melhor parar de perder o meu tempo.
Levei alguns anos acreditando em tudo isso. Até que um dia escrevi.
Uma história puxou outra e logo eu já não estava mais doente. As páginas foram se multiplicando, os capítulos se empilhando, olhei para baixo e tinha em mãos meu primeiro livro. Sem qualquer outro aviso o livro agora ia ser publicado e qual não foi a minha surpresa, quando na noite de lançamento, com uma fila imensa de pessoas aguardando meu autógrafo, olhei para o meu nome na capa e respirei fundo, pois eu ainda não me considerava um escritor.
Não sei o que torna alguém um escritor. Hoje tenho quatro romances publicados, algumas participações em coletâneas, mantenho este site, e a Gazeta Ordinária, um boletim que está chegando a sua 50º Edição, sempre com um conto inédito. Escrever é parte do meu cotidiano. É o que eu faço para me sentir bem. Escrevendo eu consigo organizar meus pensamentos, poupar uns trocados com a terapia, dar algum sentido a esse mundo e tocar outras pessoas de uma forma segura, mesmo durante uma pandemia. Escrever me deu memórias, amigos e talvez alguns inimigos (o que acho tremendamente divertido), mas eu não saberia dizer se isso me faz um escritor.
Essa manhã pensava sobre o que escreveria na próxima Gazeta Ordinária enquanto levava minhas cachorras para passear. Lutando com algumas ideias rarefeitas e pouco claras, me dei por vencido e fui dar uma olhada no que acontecia no twitter e a primeira coisa que vi foi uma autora decretando sem medo que nem todo mundo que escreve é de verdade um escritor.
Como era de se esperar a frase ecoou na internet, entre apoiadores e críticos, mas ecoou ainda mais na minha cabeça, quase como um ataque pessoal, pois se havia alguém que escrevia e realmente não era um escritor, só podia ser um: A fraude que escreve. O farsante que publica. Regurgitador Geral da República das Letras. Eu.
Quatro livros publicados, centenas de contos, outra centena de artigos e ainda assim: somente um escrevinhador, jamais um escritor e estava ali uma autora famosa que eu nunca ouvi falar para dar sua palavra final e encerrar o assunto. Nem todo mundo que escreve é escritor. Pois é, dancei.
Fico pensando no que mais seria preciso para ser escritor além de escrever. Pensei em grandes autores descobertos por acaso, alguns imortalizados com um único livro, uns jovens demais para serem levados a sério, outros velhos demais para continuar insistindo, todos aclamados e inquestionáveis. Lembrei dos cronistas diários, dos romancistas exaustos, dos roteiristas incansáveis. Gente publicada e anônima. Obsessivos. Gente com condições de vencer a exaustão de um dia inteiro de trabalho para se sentar por vinte minutos e anotar as amarguras da vida, por nada além de não enlouquecer em seu quarto de despejo. Gente que, assim como eu, nunca ganhou um tostão que já não estivesse empenhado com o próprio livro. Essa gente que, segundo o novo decreto, jamais seria considerada como escritora, mas entrava nessa estranha categoria de gente que escreve.
Ser escritor no Brasil é uma tarefa abraçada pelos privilegiados e obsessivos. Ou talvez não. Talvez os obsessivos sejam os que escrevem e os verdadeiros escritores sejam apenas os privilegiados. Essa gente limpinha e cheirosa, com o poder de determinar quem será aceito ou não no seu clubinho como maneira de combater suas próprias inseguranças, pois deus o livre de se sentar a mesa com alguém que só escreve, mas não é escritor. Seja lá o que isso quer dizer.
Já que é preciso renome para ser ouvido, vou me fiar no prestígio de Saramago, um dos escritores que mais amo neste mundo, que me fez rir e chorar no intervalo de poucas páginas, a quem ninguém jamais acusará de só escrever. Jornalista, publicou seu primeiro livro depois de velho, embora tenha escrito a vida toda e pensava diametralmente diferente de tudo isso quando dizia:
“Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não.”
José Saramago
Um abraço aos que escrevem.
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