Uma história para mim está morta enquanto estiver sem título. Não sei o quanto isso faz sentido para os outros, mas para mim encontrar o título certo é dar a história o sopro de vida e significado. O momento em que isso acontece não é muito preciso. Algumas vezes a história surge na minha cabeça já com um título e eu já sei ao que ela se refere, outras vezes ela tem o título provisório que vai embora assim que a história toma forma, algumas raras vezes a história é apenas o seu título e eu a mantenho circundando a minha mente, até que a carne se amontoe sobre seu espírito, o que talvez me explique porquê alguns títulos me assombram através dos anos, buscando por uma forma de ganhar vida.
Escolher um título nunca foi um problema. Sei que muitos autores sofrem com esse momento, mas para mim o título sempre aparece de forma natural, mesmo que nem sempre ele transpire criatividade. Boa parte dos títulos da Gazeta Ordinária, por exemplo, não me agradam completamente, mas eles cumprem o papel. Das histórias mais longas, os títulos me parecem mais harmônicos e seu sentido são mais claros. Talvez pelo tempo em que história e título tiveram para ganhar familiaridade um com o outro.
Na maioria das vezes, embora não seja regra, o título surge junto com o pitch (a ideia central) da história e fica difícil saber quem veio primeiro. O “Teatro da Ira” é um exemplo disso. Não sei se o título veio antes ou depois da ideia da história. Tenho a sensação de que eles nasceram juntos e é por isso que fazem tanto sentido. O enredo alimenta o título, mas o título também alimenta o enredo. Sinto que foi o mesmo quando escrevi “A Lenda do Mastim Demônio”. O título tinha um objetivo e era por ele que eu começava a história. Achar um nome para a série toda já não foi tão simples. Experimentei ao longo dos meses diversas variações, tentando fugir dos clichês dos títulos de fantasia como “crônicas”, “canção”, “sagas”, “aventuras”. Levou bastante tempo até encontrar “Chamas do Império”, mas descobrir o nome deu nova vida as narrativas que eu queria contar e serviu de inspiração para outros títulos e outras histórias, que eu francamente não sei se terei tempo de escrever nessa vida.
O nome provisório de “Eu sou Hella”, conto da antologia “Vikings: Nas palavras dos skalds” era “A Cavalgada Selvagem”. Como o conto foi escrito em pouco tempo, aceitei aquela ideia temporariamente, embora não estivesse nada satisfeito. Parecia algo genérico e sem personalidade, ao mesmo tempo em que entregava muito sobre a história, sem despertar a curiosidade. Quando terminei de escrever, eu já estava pensando em outros dois nomes. “A Donzela das Águas”, nome da embarcação de Yrsa e Kåre em sua visita ao litoral de Córdoba, ou “Meu nome é Hella”, que eu simplifiquei para “Eu sou Hella”. O título bateu como um martelo. Quem ou o que era Hella? Quando apareceria na história? O que queria? As perguntas se acumulavam sob o título e eu soube que o conto havia ganho vida.
Já para o conto “A casa é a fome do mundo”, da antologia “Contos de fadas sombrios”, o título veio ao final, embora muito tranquilamente, como algo inevitável. Nenhuma variação, nenhuma dúvida. O título era o que era, florescendo naturalmente, ao fim de todo o contexto, restando para mim apenas retomar a história para ajustá-la à sua realidade.
As vezes o título muda, mas raramente se perde. Uma ou outra vez o título ideal precisou ser trocado para não confundir com outra obra com título similar que já existia no mercado. Sofro um pouco, quando acontece. Como se alguém tivesse me roubado algo. Como chegar em segundo lugar em uma praia deserta. O único jeito, nestes casos, é se afastar o máximo possível e encontrar sua própria sombra. Seu próprio canto. Tento evitar esse tipo de coincidência, não me parece sinal de boa sorte.
De todas as minhas histórias, tem um projeto em específico que se arrasta através dos anos, simplesmente porquê não encontro o título certo, ou quando o encontro é algo que ouvi em outro lugar, o que acaba sendo bastante frustrante. Experimento variações, foco em detalhes, amplio para conceitos filosóficos e frases de efeito, mas nada. Ou não funciona ou já foi feito e o projeto desce mais uma gaveta na minha lista de prioridades.
Um dia desses eu acordei com o nome perfeito. Era simples, como eu imaginava e dizia muito exatamente como eu pretendia. Havia uma dupla leitura do nome, da forma que eu gosto, sem chegar a ser abstrato. O nome veio até mim como àquela voz que me desperta pela manhã, que eu não sei se sou eu, ou outro alguém e pulei da cama correndo para anotá-lo, antes que o despertar o tomasse de mim. Foi como girar uma chave. Todo um fluxo de ideias transbordou por aquele nome. Vi personagens nascendo e morrendo, enredos se emaranhando, plots dando cambalhotas alegóricas que enfim tinham algum sentido. Vi a mágica acontecendo ao vivo e fiquei tão fascinado que eu sabia que precisava escrever sobre isso.
Aqui estou.
Gosto de títulos que além de despertar a curiosidade, amplifiquem algum conceito central da história. Quando leio “O Teatro da Ira”, imagino uma história encenada ao redor da raiva de alguém. Ao mesmo tempo o título não deixa de falar sobre algo que conste como acontecimento/objeto na história. O teatro, neste caso existe de fato, a peça teatral que o coen leva para apresentar ao rei de Illioth e em todo o seu contexto, também existe a Ira. Acho importante que o título sirva de gancho para a história, mas que fuja do óbvio ou do genérico. Seria uma história diferente se eu estivesse escrevendo “A vingança de Jhomm Krulgar”.
Em um título, como é de se imaginar, cada palavra conta. A Lenda do Mastim Demônio é um título diferente de “O Mastim Demônio”, mesmo que as vezes eu chame o livro assim para simplificar. Acrescentar “A Lenda” tem um sentido narrativo importante e não está ali por acaso. O livro tem um narrador personagem, que conta toda a história com o timbre e ritmo de quem conta um causo, as vezes dando voltas, as vezes pulando trechos. Eu queria que a história tivesse esse clima de contadores, que sempre alteram ou aumentam um ponto, enquanto gesticulam diante do fogo, deixando dúvidas sobre o que aconteceu de verdade e o que é pura invenção. Apesar de sabermos que alguns daqueles personagens existem, é impossível dizer se o narrador está dizendo a verdade, ou não.
Algumas vezes o título aparece em algum trecho da história. Confesso que isso é um cacoete e as vezes me arrependo quando acontece, como se eu estivesse explicando a piada. Acho que funciona melhor quando o título e extraído de dentro de um trecho, ao invés de ser inserido dentro dele propositalmente. Não acho que seja algo necessário, mas se tornou uma força maior do que eu e eu peço desculpas por isso.
Por último, meus títulos tem um vício de formação. Sou designer, então acho que os títulos precisam ser visualmente bonitos. Entendo o quanto isso pode soar arbitrário, mas eu gosto de escrever os títulos para ver como as palavras se comportam juntas. Os espaços que criam, o tamanho das hastes. Palavras com tamanhos muito diferentes, ou caixas altas e baixas que podem tornar a leitura confusa. Ninguém tem obrigação de pensar nessas coisas enquanto está escrevendo uma história, mas para mim já é algo natural e faz parte do meu processo.
Títulos são importantes. De um bom nome a sua história. Pense nele com o mesmo carinho com que você pensou todo o resto e insista e reescreva até que você chegue ao resultado que te deixe satisfeito. Você vai saber quando o encontrar. Nomes tem poder.
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