Eu sou um cara calmo. Gosto de pensar que eu sou um cara calmo. Preciso pensar que sou um cara calmo. Preciso permanecer calmo. Estou calmo no momento. Na verdade, estou medicado, o que me deixa mais calmo. Quase sempre. Toda a tranquilidade, porém, tem um motivo.
Quando eu era um jovem idiota (antes de me tornar um velho idiota), era difícil manter a calma. As pessoas entendiam o silêncio como uma forma de concessão e eu explodia em gestos de raiva racional. Sim. Digo racional pois ela nunca era impensada, era planejada e executada de forma a causar o maior estrago possível. Eu era capaz de ouvir o diabo no meu ombro dizendo que se eu empurrasse a pessoa da escada a chance dela quebrar o pescoço era maior e então obedecia, mas diz o ditado: a raiva passa, a merda fica. Então vinha o remorso, o arrependimento, a vergonha.
Nos padrões de hoje, certamente eu seria considerado um garoto malvado. Tinha pouca ou nenhuma preocupação pelo sofrimento alheio, embora não encontrasse satisfação alguma em presenciá-lo. Não era que eu gostasse de ver os outros sofrendo, eu apenas não me importava desde que me deixassem em paz e se esse fosse um caminho para minha tranquilidade, não via qualquer problema em torna-lo realidade.
Ficou claro logo cedo que eu não seria vitima de bulling. Eu revidava cada provocação com uma violência muito maior e desproporcional e as vezes maquinava a minha vingança por meses, sem nunca perder o foco, mesmo quando o motivo da raiva já tinha se apagado. O sentimento persistia e me mantinha adiante. Uma vez durante uma discussão furei o pé de um colega com um compasso, nunca houveram recursões.
Em uma dessas explosões eu tentei matar um coleguinha. Sei que parece exagero, mas pode ter certeza que não foi. Aconteceu na quadra de esportes, quando ele achou que seria engraçado bater a bola de vôlei na minha cabeça. Eu perguntei porquê ele tinha feito isso e ele repetiu o gesto, como uma esquete dos trapalhões. Olhei ao redor procurando a bola para revidar, mas ela tinha caído longe e havia um tijolo muito mais perto. Assim que viu eu me abaixar, o garoto correu procurando a segurança da distância, mas aquilo não me impressionou. Com um cálculo aritmético complexo, levando em consideração a sua velocidade de deslocamento, o peso do tijolo e a fricção do ar, eu girei sobre meu eixo, como um arremessador de peso olímpico e lancei o tijolo em uma parábola que passou na altura da janela das salas do segundo andar.
Enquanto o tijolo subia eu pensava no que aconteceria na sequência. Tinha uns doze anos, não sabia se seria preso, mas estava certo de que minha mãe ficaria furiosa comigo. Pensei que deveria fugir da escola, talvez escapar da cidade. Me via como um andarilho, empurrando o carrinho de supermercado pelas estradas do país, sem dentes e sem documentos. O tijolo chegou ao topo da parábola e parou por um instante, em dúvida. Eu torcia para o garoto correr em zig-zag, mas o idiota continuou em linha reta e o tijolo fez o mesmo. Talvez eu fosse para a FEBEM, ou talvez me colocassem em um asilo para gente doida. Nenhuma das opções me agradava. Seria um criminoso. A ideia de ser um fora-da-lei não me assustava, mas não gostava da ideia de ser considerado bandido e isso, para mim fazia muito sentido. O tijolo desceu com velocidade, como um cometa, um míssil teleguiado. As outras crianças tampavam os olhos ou gritavam para o menino se abaixar. Eu balancei os ombros, conformado com a minha nova realidade.
O tijolo passou tão perto da cabeça dele que nem o garoto acreditou. Sentou-se no chão, os olhos esbugalhados, absolutamente branco, esperando a alma retornar ao corpo. Voltou andando vagarosamente, as pernas meio bambas pela corrida ou pelo medo, olhou nos meus olhos e me chamou de maluco. Minha reação foi rir e continuar a jogar, mas eu sabia a verdade.
Daquele dia em diante entendi que precisava me policiar. As explosões ainda aconteciam, mas eu as direcionava a coisas, não a pessoas. Minhas vinganças precisavam ser duras, mas nunca permanentes. Aprendi a enfrentar tudo com sarcasmo e descontar a energia em outros lugares. Com amigos da mesma idade saíamos para destruir coisas. Quebrar garrafas, derrubar muros, amassar latas, incendiar caixas de papelão. Mesmo não tendo idade frequentávamos um bar punk que guardava as garrafas no chão para não quebrarem quando as cadeiras começavam a voar. Não era estranho, nem exótico, era só como as coisas eram e eu consegui envelhecer fora da cadeia.
Consigo me lembrar de duas reações muito violentas depois disso, mas elas não importam de verdade, não depois de tudo o que eu disse. Com o tempo manter a calma foi se tornando mais fácil, mas isso não reduzia a minha raiva. Senti o resultado de tudo isso no corpo, ansiedade, depressão, gastrite, autoflagelação. Coisas banais como atravessar uma passarela ou esperar o trem vinham sempre acompanhados de um pensamento violento. E se eu pulasse? E se eu empurrasse alguém. E se eu jogasse o meu chefe? Continuava sorrindo e respirando fundo, engolindo os sapos com doses cavalares de café e álcool.
Criei uma habilidade surpreendente de me auto sabotar. Sempre que eu conseguia algo bom eu encontrava um jeito de destruir. Os meus relacionamentos eram sempre os mais destrutivos, o inverso da raiva para mim era a tristeza e eu só sabia oscilar entre uma coisa e outra. Um dia simplesmente não aguentava mais. Estava cansado daquele ciclo sem fim e procurei ajuda. Encontrei paz para os meus demônios com terapia e medicação, foi quando consegui enxergar o perigo que eu vinha correndo todo esse tempo.
Nas minhas primeiras sessões, minha terapeuta dizia que eu parecia incapaz de sentir raiva. Que as coisas que aconteciam me decepcionavam, me entristeciam, mas não me enraiveciam. A raiva, segundo ela, tinha um lado positivo, de auto preservação. Achei aquele comentário estranho e pensei sobre ele durante muitos e muitos anos. Onde tinha ido parar toda aquela raiva?
A última vez que eu perdi a calma, de verdade, foi quando um idiota chutou a minha cachorra. A confusão começou um quarteirão antes quando, distraído, não vi minha cachorra pular na calça dele. O engravatado reclamou, eu pedi desculpas, ele continuou exaltado, minha cachorra latiu em minha defesa, ele me mandou calar a boca do cachorro, eu pedi desculpas novamente, ele continuou dizendo que eu não devia ter cachorro ou algo do tipo. Eu disse que se ele não queria me desculpar que tomasse no meio do cu e seguisse o caminho dele. Não ficou menos feio depois disso.
Tentei me afastar, mas ele continuou atrás de mim me ameaçando, até que eu cheguei ao portão do meu prédio. Assim que o portão abriu e eu entrei, ele se virou e chutou minha cachorra que ainda estava do lado de fora. Eu sabia que iria matar o cara. Rolamos na calçada trocando socos como duas crianças. As cachorras mordendo, as pessoas gritando, meus porteiros correndo. Palavrões, ameaças, mais socos, distância por fim. Ele prometendo voltar dizendo que sabia onde eu morava, eu pedindo para ele anotar o endereço e não esquecer de chamar. Passei o resto do dia esperando a polícia tocar minha campainha, fazendo planos sobre quem tomaria conta dos cachorros quando eu fosse preso. Mandei mensagem para uma amiga advogada, expliquei por cima o que houve para os meus amigos e tomei coragem para ligar para os mesu pais. Não queria que fossem pegos de surpresa se o pior acontecesse. Contei tudo, do começo ao fim, com todos os detalhes que eu era capaz de me lembrar, com minha mãe ouvindo em silêncio do outro lado da linha. Quando terminei, respirei fundo e esperei a sua sentença.
– Mas e a cachorra, está bem?
Dei risada. Finalmente estava livre. Livre para sentir raiva.
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