Semana passada eu furei a quarentena. Não sei se devo ter vergonha ou orgulho disso, mas a verdade é que estou feliz por ter acontecido. Depois de quatro meses sem ver minha namorada, tivemos uma chance de nos encontrar. Toda a ação aconteceu em clima de resgate. Pela manhã um amigo me mandou uma mensagem, tinha acabado de comprar um carro e estava indo buscar minha namorada para trazê-la até a minha casa. Ainda era cedo e eu não sabia se tinha entendido direito, mas foi assim mesmo que aconteceu. Ele e a namorada atravessaram a cidade para busca-la, a trouxeram para cá e depois foram embora, sumindo no ar como uma fada madrinha após executar um pequeno milagre.
Com a mala no chão, nos abraçamos como só um casal que não se vê a quatro meses poderia fazer, mais tarde ela confessou que estava preocupada das cachorras não a reconhecerem, mas toda a festa provou que ela estava errada. Olhou ao redor tentando reconhecer àquela casa, mesmo que nada tenha saído do lugar nos últimos meses. Lavou as mãos, tirou a máscara, respirou o ambiente testando se o ar era seguro, finalmente nos beijamos.
O encontro tinha cara de “saidinha temporária”. Acho que é o que chamam de novo normal. Durante 48 horas, o mundo voltou ao que era antes. Fingimos que estávamos em casa por opção, assistimos televisão e secamos duas garrafas de vinho. Havia pouco ânimo para falar sobre a pandemia, ou sobre os crimes do governo, passado e futuro se tornaram um borrão e tudo o que importava era o agora.
Mesmo nos falando todos os dias, ainda tínhamos muito assunto para conversar, acho que tem coisas que só surgem pessoalmente. Eu quis cozinhar, depois não quis mais, porquê ia roubar um pouco do tempo em que ficaríamos juntos. Aquele pequeno Oásis temporal em meio ao caos que se tornou toda a minha vida me deu nova energia. Era como estar de férias em casa e eu me esqueci completamente do governo, da covid, da falta de emprego, do dinheiro que não tinha.
Quando ela se foi eu vi a casa vazia pela primeira vez. O efeito era psicológico, eu sei, mas no inicio da quarentena, fui me acostumando aos poucos, como quem se acostuma com uma infiltração em uma parede e não se dá conta de como ela cresceu. Quando meus amigos voltaram para leva-la embora, me dei conta de que não haveria ninguém quando eu fechasse a porta e eu nunca quis tanto que esse pesadelo chegasse ao fim.
Não sei até quando vamos viver desse jeito. Sentindo falta de pessoas que estão do nosso lado e parecem tão distantes quanto outro planeta. Escolhendo quais regras da quarentena quebrar, tentando equilibrar o risco da contaminação com o risco para nossa sanidade.
Esses dias eu sonhei que vivia em um prédio que se inclinava lentamente, ameaçando cair. Do lado de dentro eu percebia primeiro as luzes piscando, os canos de água estourando nas paredes, enquanto pequenas rachaduras denunciavam a desgraça. Quando cheguei na sala eu olhava direto pela janela e ao invés do horizonte eu via o chão se aproximando. Era tão alto que as pessoas se tornaram formigas desesperadas sob a sombra de uma bota e quando a janela se espatifou contra o asfalto eu acordei longe dali, ansioso para chegar em casa, como quem havia acabado de ter uma premonição. Chegando na porta do prédio a polícia já impedia as pessoas de entrar. Eu tentava explicar que minha namorada estava lá dentro e o policial dizia que todo mundo já estava no ônibus, sendo evacuado, haviam porém, alguns sacos de corpos pelo chão. O prédio, visivelmente inclinado era escorado por vigas de madeira, tinha não mais do que três andares, bonito como uma casa de boneca no meio do parque. Minha namorada estava no ônibus, não sabíamos para onde estávamos indo.
Semana passada eu furei a quarentena. Passei o resto dos dias andando pela casa, tentando me concentrar em coisas que pareciam subitamente sem a menor importância, com completa ciência de que não tinha controle algum sobre a minha vida. Tentei os truques de sempre. Escrever, desenhar, meditar, ouvir música, assistir documentários aleatórios ou afundar em qualquer pequeno projeto como se fosse a cura do…
Lá estava novamente, sorrateira e certa, a lembrança de que o mundo acabou em algum momento esse ano e que vivemos nas suas ruínas. É isso o que chamam de novo normal.
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