Colecionar histórias é praticar uma espécie de arqueologia quântica, onde estudamos os universos possíveis ao nosso redor.
Todos os dias pela manhã, abro os olhos para o teto e tento me lembrar de onde estou. Enquanto minha mente se ajusta ao despertar, me levanto, escovo os dentes, troco a roupa, verifico o tempo lá fora, preparo as cachorras para sair e apanho minha máscara. No elevador no caminho do térreo eu pego o celular para confirmar se Jair Bolsonaro foi eleito presidente em 2018. Continuo preso aqui.
Um dos funcionários da agência que eu trabalhava tinha as melhores histórias; tinha sido guarda-costas do Collor, transado com metade do elenco da Globo, entre outras aventuras. Eu ouvia cada detalhe, encantado e quando as pessoas sacudiam a cabeça e me perguntava se eu acreditava mesmo em tudo aquilo, respondia que não me importava, a história continuava sendo boa, sendo verdade ou não.
“Não me importa a mentira, mas odeio a imprecisão.”
Samuel Butler
Quando eu era criança briguei com o vizinho porquê ele tinha me dado um soco sem querer. Eu abri o portão, ele tomou um susto e me bateu com toda força. Fiquei dias sem falar com ele por causa do ocorrido até que ele veio me procurar e eu exigi desculpas. Meu vizinho disse que eu estava maluco, que aquilo nunca tinha acontecido, foi quando notei as imprecisões da minha história: porquê eu estava abrindo o portão? O que eu fiz depois disso? Porquê meu olho não estava inchado? Era obviamente uma peça que minha mente havia criado. Pedi desculpas e fomos brincar ou quebrar alguma coisa.
Anos mais tarde, quando me lembrei do incidente, meu amigo disse que nada disso havia acontecido. Nem o dito murro, nem o pedido de desculpas, nem o momento de percepção da verdade. Era tudo uma mentira, do começo ao fim, mas as vezes ainda tenho minhas dúvidas.
Não sei onde essa história se tornou real. Talvez tenha sido um sonho, talvez alguma brincadeira, talvez tenha sido um quase-evento que me rendeu uma possibilidade de história. Talvez seja tudo isso, ou talvez tenha sido real. A memória, porém, existe. Com a dor no olho e toda a raiva que senti, mesmo enquanto ele pedia desculpas. Também era real a percepção de que o murro e a raiva haviam sido inventados e agora também é real a noção de que nada disso aconteceu.
Se tudo isso parece loucura, você vai ficar chocado ao saber que a loucura não é só minha. Ao redor do mundo, milhares de pessoas relatam a chamada Síndrome da falsa-memória, que ficou popularmente conhecida como efeito Mandela, por conta da história de Fiona Bromme, que durante uma convenção afirmou com toda certeza de que Nelson Mandela havia morrido na década de 1990. Nelson Mandela ainda era vivo quando ela afirmou isso. Poderia ser só um desconhecimento, mas dezenas de pessoas na plateia diziam se lembrar nitidamente da sua morte, com detalhes sobre o seu funeral. Estariam todas mentindo? Ou estariam todas enganadas da mesma forma? Bromme criou um site chamado The Mandela Effect, onde coleciona falsas-memórias e a história se popularizou.
Minha teoria favorita é de que tudo isso é mentira e realidade ao mesmo tempo. Talvez essas falsas-memórias sejam resquícios de uma realidade quântica. Memórias de um universo paralelo onde as coisas aconteceram de forma diferente. Talvez nossa consciência salte de um universo para o outro o tempo todo, na maioria das vezes sem perceber as mínimas diferenças entre a realidade. Em um universo uma folha de árvore cai antes do soco, no outro ela cai depois do soco. Não faria diferença na minha memória. Porém em outras realidades as mudanças sejam perceptíveis, causando as imprecisões das nossas histórias. Nesta teoria nossas memórias estariam certas, o universo ao nosso redor que estaria errado. Minha memória diz que eu levei um soco, porquê eu realmente vivi esse momento em outra realidade. Como na maioria das realidades a variação é muito sútil, mal chegamos a perceber que demos um salto, mas talvez existam realidades menos sutis. Em uma Mandela morreu na década de 1990, em outra morreu em 2013 e em alguma ele continua vivo.
Pensando assim, todas as nossas memórias são verdade e mentira ao mesmo tempo. O soco. As desculpas. A retratação. A percepção da falha. Essa crônica. Tudo isso aconteceu e nada disso aconteceu, dependendo do universo ao qual você pertence.
Há muitos anos eu esbarrei com uma frase de Samuel Butler, que dizia: “Não me importa a mentira, mas odeio a imprecisão.” Me senti representado.
Meu passatempo é colecionar histórias. Algumas delas eu vivi, outras eu ouvi, umas tantas eu criei e as vezes a distinção entre os três tipos não é muito clara e por mim tudo bem. Talvez sejam resquícios arqueológicos de uma realidade em que eu vivi um dia.
Amanhã eu vou acordar olhando para o teto, depois vou me arrumar, verificar o tempo lá fora e sair para passear com as cachorras. No elevador, vou pegar o celular e então talvez, apenas talvez, descobrir que Jair Bolsonaro não se elegeu em 2018. Que a pandemia não aconteceu. Que a crise econômica foi apenas uma marola. Vou contar para os outros a minha memória e as pessoas vão rir de mim. “Bolsonaro presidente? Absurdo.” E eu vou sentir uma pontada de alívio antes do ver o sigma integralista nos dirigíveis que sobrevoam a cidade.
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