I can’t seem to face up to the facts
Psycho Killer, Talking Heads
I’m tense and nervous and I
Can’t relax
I can’t sleep ’cause my bed’s on fire
Don’t touch me I’m a real live wire
O mundo ao meu redor tinha as cores de nebulosas espaciais e o som da guitarra em baixa rotação, tamborilando em meus tímpanos. Era como um daqueles filmes de herói: Havia o salto, as cores, os gritos, a máscara e a capa, e a câmera lenta que girava ao meu redor enquanto observava a pista do alto, ignorando por completo a força da gravidade.
Antes disso eu estava no balcão do mezanino, lutando contra a peruca negra e escorrida, com a máscara de Gui Fawkes no queixo, tomando outra dose de cachaça com um rapaz amarrado em um colchão nas suas costas. Devia ter parado por ali, mas não dava. Tinha acabado de me separar e enterrado o meu avô. Soluçado por dias esperando que o telefone tocasse com alguém do outro lado me estendendo o abraço, mas isso tinha sido alguns dias antes. Agora eu tomava outra dose de cachaça. Seca, assim como meu avô fazia. Uma garrafa de 51 e dois maços de Derby por dia. Os pacotes enfileirados sobre a estante do quarto, como um armazém do interior, para que não corresse risco de faltar.
Uma pirata-caolha sorria para mim e eu achava tudo engraçado. O rapaz amarrado ao colchão pediu outra dose. Já tinha perdido as contas. Olhei ao redor lembrando que da última vez que estive naquele bar, o namorado novo de uma ex-namorada estava na porta, de farda e arma na mão. Eu passei de cabeça baixa, torcendo para não ser visto. O filho da puta tinha tentado me atropelar com a moto uns anos antes, vai saber o que ele ia fazer agora que era polícia. O delegado chamava meu avô pelo nome, mandava ele ter juízo e ir para casa, as vezes com a camisa cheia de sangue, mas o sangue nunca era dele.
A banda tocou Psyco Killer, eu virei a última dose de cachaça da noite, agarrei minha amiga pelo braço e a gente correu para a pista, “run, run, run, run, run, run, run, away”. Meu avô lutava contra a falta de ar para gargalhar quando eu disse que o enfermeiro tinha vindo fazer o exame de próstata. Ele preferia que fosse o enfermeiro da manhã, que tinha mãos menores. Meu tio chorava no canto do quarto. Eu mandei ir dar uma volta, com a tranquilidade de quem parecia saber o que estava fazendo. Meu avô aproveitou que estávamos sozinhos e agarrou minha mão, dizendo que eu era seu melhor amigo. O teto girava, magenta e azul, com lasers verdes descendo pelas paredes e eu cheguei ao topo da escada. O mundo lá embaixo era cheio de fumaça e fúria. Além da capa e da máscara de super-herói, também usava botas até a altura dos joelhos. A sola gasta escorregava pelo piso e eu concluía que para lutar contra a vilania era melhor usar tênis.
Dois degraus e a cachaça me faria rolar escada abaixo. Podia parar. Desacelerar. A música estava chegando ao fim. Eu tinha ficado sentado durante horas no mesmo lugar, olhando para o telefone que não tocava, sem que ninguém tivesse coragem de se sentar perto de mim. Minhas lágrimas eram algum tipo de doença infecciosa que as pessoas preferiam evitar. O rapaz que tinha se separado e voltado para casa dos pais, pouco antes do seu avô falecer. As pessoas se inclinavam sobre meu avô para se despedir e eu achava que o corpo ali era um boneco oco de cera, tão pouco dele havia restado. Durante a procissão eu não conseguia entender como um senhorzinho baixo e magro, meio comido pelo câncer podia ser tão pesado sobre os meus ombros. Para não rolar escada abaixo, fiz o que era mais estúpido.
Quanto mais alto estamos, mais lento o tempo fica. O experimento já foi feito com relógios de precisão ao redor do mundo. A diferença entre dois relógios que começam sincronizados passa a variar centésimos de segundo quando um permanece na altura do mar e outro sobe uma montanha. Enquanto eu sobrevoava a pista de dança vendo o rosto confuso das pessoas abaixo de mim e torcendo para não cair sobre ninguém, o tempo havia parado quase por completo. Fiquei esperando para ver o filme da minha vida, mas só conseguia pensar na minha mãe, gigante até a última pá de terra e então suas lágrimas. Sabia que ela me odiava por causa da minha separação e eu não tinha pedido desculpas. “Ce qu’elle a dit, ce soir la, Realisant mon espoir, Je me lance, vers la gloire, ok.”
Coisas estranhas acontecem quando eu devia estar com medo. Como a vez em que achei que um assaltante ia me jogar de cima de uma ponte porquê eu mostrei o dedo do meio, ou quando um amigo de coração partido me levou para andar de moto e fomos parados pela polícia com uma espingarda apontada no meu nariz. O buraco negro sugando a minha vida com a certeza de que respirar era uma ofensa grande demais para o momento. A certeza da morte, mesmo quando equivocada, trazia um pensamento lúcido. Colocando em ordem as prioridades. Enquanto a gravidade se lembrava da minha existência eu calculava a probabilidade de quebrar o pescoço e ensaiava formas de amortecer a queda assim que encostasse no chão, repassando em minha mente todos os filmes mentirosos de Hollywood. Se caísse sobre uma poça d’água, um toldo ou um carro, tudo ficaria bem.
Um buraco negro é um ponto de massa tão densa que nada é capaz de escapar a sua gravidade, nem mesmo a luz ou o tempo. Ao seu redor havia um limite, uma fronteira sem retorno se fosse transpassada, chamada Horizonte de Eventos. Um tubarão com milhares de dentes enfileirados, que ficava com tudo aquilo o que pudessem abocanhar.
A única mensagem que minha ex-mulher me enviou tinha quatro palavras. Ela não sabia o que dizer, mas aquilo não me apaziguou naquela época, assim como reconhecer que ela tinha motivo o suficiente para me odiar não me faz esquecer disso hoje. Eu jamais teria feito isso com ela e mesmo hoje ninguém teria dúvida disso, por mais canalha que eu tenha sido. Havia sido traçado ali o limite do tanto de ódio que alguém pode suportar. Meu Horizonte de Eventos. “We are vain and we are blind”.
Senti a dor percorrendo meu calcanhar esquerdo como um raio, chegando até o meu joelho. A aterrisagem tinha sido registrada por sismógrafos no interior de São Paulo e Minas Gerais. Fiquei onde estava por um instante sem entender se tinha conseguido ou não sobreviver. Ali perto um cacho de uva olhava para mim com olhos estalados, enquanto Chaves e Chiquinha se cutucavam e apontavam na minha direção. A dor alcançou meu estômago e subiu pelo meu peito, como uma baforada do cigarro que uma vez roubei do meu avô. O mesmo que ele fumou por setenta anos e o tinha apodrecido por dentro. Eu só queria me levantar e dançar. Tentei um só um passo.
Dizem que diante da morte as pessoas assistem a um resumo de suas vidas. A maioria das pessoas muda lentamente com o passar dos anos; outras, como eu, sabe exatamente o momento em que tudo mudou. Quando algo em si morreu e algo novo começa a despontar. Saí carregado por um cacho de uva risonho e uma marinheira furiosa por ter perdido o resto da festa. No pronto-socorro um médico de muletas me encaminhou para o raio-x, onde um enfermeiro ria da minha incapacidade de entender ordens. Meu avô pedia pelo enfermeiro da manhã, aquele que tinha mãos menores.
O médico me mandou ter juízo e ir para casa, mas nunca me chamou de senhor. Me colocaram em um táxi, deram o meu endereço. Confesso que não lembro do resto. No dia seguinte um amigo me levou de volta ao hospital de onde eu só sairia semanas depois com cinco pinos e uma placa de metal. Ainda dói quando faz frio. As cicatrizes as vezes coçam. De vez em quando a placa sintoniza em ondas de rádio de uma nebulosa magenta e azul a anos luz daqui. A transmissão atravessa o titânio e penetra em meus ossos, como ácido. Sempre dói, mas também ouço a risada do meu avô, então vale a pena.
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