Dia desses eu conversava sobre a moralidade dos demônios em uma discussão de internet – sim, frequento lugares estranhos, vocês não fazem ideia – quando a pessoa com quem eu conversava afirmou com todas as forças que “nem um demônio é totalmente mal”. Bem, fiz uma pergunta simples: de que demônios estamos falando? De que mitologia? E o engraçado foi que a pessoa me acusou de ter uma educação cristã e me mandou pesquisar outras mitologias antes de falar com ela.
Minha questão, obviamente para quem leu minha pergunta, era sobre a afirmação de que “nem um demônio é totalmente mal”. O que me pareceu engraçado, a primeira vista, pois não acredito em demônios então só posso duvidar que alguém tenha encontrado algum de verdade e descoberto que ele era um cara legal. Sabendo que demônios são seres mitológicos – deixando as crenças de lado, por um instante – achei que fora uma confusão a respeito do “nem um demônio”, afinal, com tantas religiões pelo mundo era difícil dizer que em todas elas os demônios eram caras mais ou menos legais e mesmo se não houvessem tantas, o cristianismo e o judaísmo já anulariam sim a afirmação. Criação bíblica ou invenção papal, o demônio da igreja não é um cara bacana. Ele é simplesmente o mal encarnado em oposição a bondade divina, ou seja, uma relação bastante dicotômica.
Difícil foi fazer a pessoa entender, depois desse embrolho, que eu não sou cristão e que não defendo a dicotomia de uma história, já o fiz quando era jovem, mas o mundo me ensinou outras coisas. Obviamente a pessoa nunca havia lido nada do que eu tinha escrito, ou não diria uma loucura dessas. Quem acompanha meu trabalho sabe o quanto eu me esforço para manter os personagens nessa zona cinza onde vivem os seres de carne e osso.
Foi essa simples conversa que me fez escrever esse artigo. Não para me defender, ou atacar, prolongando uma discussão que obviamente não levaria a lugar nenhum, mas para falar sobre um pouco da mitologia de Qaran, um assunto que eu tenho negligenciado aqui, apesar de preencher muitas páginas dos meus cadernos.
Os deuses de Qaran, não são como os deuses de outros universos fantásticos, simplesmente porquê eles não criaram o mundo. Eles o conquistaram. Se existe uma coisa comum entre a mitologia dos homens e dos eldani (o nome verdadeiro dos dhäeni), é isso: Qaran existia muito antes dos deuses dos homens caírem do céu. A partir disso, a história se divide e é preciso contar cada versão em separada.
Segundo os eldani, o mundo fora criado por Paramaã, a primeira oradora a ouvir e cantar a Grande Canção do Mundo, dando início ao próprio tempo. Da canção de Paramaã surgiram as montanhas e rios, o céu e os mares, e tudo o mais que ela pudesse cantar. De todas as suas criações a melhor era os eldani, que também aprenderam a Grande Canção e ajudaram Paramaã em sua criação, com sua voz. Surgiram os animais e as plantas e estrelas no céu e Léa, a grande lua, mas também surgiram criaturas sombrias, dragões e serpentes, monstros e assassinos, pois tudo isso também existia na Grande Canção e Paramaã não podia deixar nada de fora. O mundo não era perfeito, mas era equilibrado e bastava por muitas eras.
Até que os dhungeini, (Senhores do Poder) dividiram o céu ao meio, marchando contra a criação de Paramaã. Sua chegada foi tão violenta que rachou a própria existência entre o material e o espiritual. A guerra entre os dhungeini e Paramaã durou eras e para tentar vencê-la, Paramaã usou tanto sua luz quanto as trevas, se sacrificando, no fim, para dar a luz a Carion, a serpente do caos, que quando cortada dava origem a mil monstros e que deveria engolir os novos deuses e adormecer para sempre. Os dhungeini, porém venceram a serpente a aprisionaram com seus filhos nos calabouços do abismo, onde ela tem sido guardada por Moran, desde então. Os dhungeini se tornaram senhores do céu e do mar, dos animais e das plantas, da luz e das sombras, exigindo os votos de tudo aquilo que existia. Exceto os eldani. Os eldani haviam cantado com a primeira oradora e tinham em si a Grande Canção do Mundo, se recusando a se ajoelhar aos novos deuses. Como punição por sua desobediência, os eldani foram banidos dos salões dos deuses e confinados a Qaran, em um ciclo de morte e sofrimento até que aquela terra se esgotasse e eles fossem novamente embora. No lugar dos eldani, os dhungeini criaram os homens, que já nasceram como seus escravos.
As lendas eldani dizem que quando o último de seu povo morrer a Grande Canção do Mundo irá silenciar e então Carion sairá de sua prisão para devorar os deuses, dando a Paramaã sua vingança. Até lá, lhes resta apenas esperar.
Paramaã não existe na lenda dos homens, nem os eldani estão presentes quando os deuses chegam a Qaran. O mundo era dominado por Carion, a serpente do caos, cujo sangue ao pingar sobre a terra dava origem a mil demônios, devorando a tudo o que os deuses criavam. Carion só pode ser capturada com o sacrifício de Ashimar que deixou-se devorar, mergulhando-a em um profundo sono, para ser trancada no calabouço de onde jamais deveria escapar. Moran se tornou seu guardião, em honra a sua amada Ashimar do qual jamais pode se separar.
Após sua prisão, os deuses reconstruíram o mundo a sua vontade e quando a paz finalmente reinou eles criaram os eldani como seus servos. Seres de grande beleza, cuja voz encantava até mesmo os pássaros e pelos quais os deuses se apaixonaram. Do filho dos eldani com os deuses surgiram os imortais, que se levantaram contra os deuses em rebelião, provocando uma nova guerra. Os deuses criaram então os Domínios, onde nem os eldani nem os imortais podiam entrar e permitiram que Moran abrisse o calabouço do abismo, deixando que os filhos de Carion destruíssem o mundo. Houve, porém, quem teve pena do sofrimento dos eldani e imortais, se recusando a partir para os domínios e ficaram para lutar ao lado dos eldani. Esses deuses que ficaram para trás criaram os segundos filhos. Os humanos e deram para eles a chance de entrar nos domínios se fossem servos fiéis aos deuses. A cada um era pedido um voto e cumprido o voto eles poderiam ser recebidos pelo deus a quem juraram servir. Ao lado dos segundos filhos, os deuses restantes venceram novamente os filhos de Carion, confinando-os as trevas.
Apesar de ser apresentado em formato de panteão, os deuses dos homens não são muito unidos. Eles lutam entre si e não se importam em trapacear e assassinar em nome de suas conquistas. São seres belicosos, normalmente representados usando armaduras e portando armas, alguns com formas antropomórficas, outros com aspectos monstruosos. Os seres humanos são seus servos e lhes devem obediência e gratidão, estando sujeitos aos seus caprichos.
Muito provavelmente a lenda eldani e humana têm uma origem comum, como duas facetas de uma mesma história, mas o mais provável é que ambas estejam erradas. Talvez o universo esteja ai a milhares e milhares de anos, criado por uma grande explosão cósmica. Ou talvez essa explosão seja apenas o sopro de outros deuses. Quem sabe? Talvez só os deuses possam responder e é preciso estar morto para encontrar os deuses. Para você merecer o paraíso, não precisa ser bom, precisa apenas ser fiel aos seus votos. Não importa o quão cruel ele possa ser.
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