A questão sobre a magia no Império vira e mexe volta a me atormentar. Magos (ou Maghöe) existem, já sabemos disso, a história do Império está cheia deles, mas como tornar a magia um exercício narrativo e não uma demonstração de efeitos especiais? Como torna-la ao mesmo instante assustadora, poderosa, sem cair nos clichês do gênero que tornam tudo possível? Esses dias me peguei pensando sobre a Academia Arcana Imperial e sobre seus magos, acabei com isso resvalando em alguns conceitos religiosos e culturais do Império e cheguei a algumas conclusões.
É sabido que existe um plano místico por baixo do tecido aparentemente mundano de Qaran. Deste plano místico que surge o elemento fantástico que faz Qaran ser tão diferente da Terra. Essa essência, que os magos chamam de élan é a força vital de tudo o que existe, a conexão entre Qaran e seu mundo-espelho, Qiron, o outro mundo. Essa energia flui de forma natural entre os dois mundos através de fontes ou nós, mas também flui através dos planos através dos efeitos mágicos.
Toda magia, em alguma medida, rompe brevemente a barreira entre os dois mundos, permitindo a transição de élan, mas talvez esse efeito não seja assim tão breve e talvez não apenas a élan transite entre os planos. Talvez eu tenha entendido mal o que era o arresto e o que causava os efeitos colaterais de se usar magia por muito tempo, mas vamos por partes. Primeiro, vamos falar sobre os deuses.
Os sulistas acreditam nos deuses tais quais são adorados até hoje em grande parte do Império, mas quando os homens do oeste chegaram àquelas terras, depois de seu longo êxodo, eles não oravam aos mesmos deuses, ao invés disso acreditavam apenas no poder de seus ancestrais de influenciar os acontecimentos no mundo. Esse poder era muitas vezes manifestado através do seu sacerdote (áugur), mas que também pode ser invocado através dos pequenos ídolos de barro feitos com as cinzas do falecido.
Houve então um sincretismo entre as duas religiões, incluindo os ancestrais como vassalos dos deuses e portadores de seus poderes, tudo isso é bem conhecido na história do Império. Embora a conclusão mais comum entre os estudiosos é de que os conquistadores não acreditavam nos deuses, a verdade é que eles possuíam o conceito dos dhugeini, Senhores dos Poderes, que tinham influência sobre o mundo, mas que um mortal não deveria importunar com orações. Tudo isso já tinha sido bem documentado e arquivado na origem dos conflitos entre o norte e o sul do Império, e foi daí que surgiu a resposta para o que poderia resolver algumas questões sobre a magia.
Me parecia importante que a magia não fosse tratada como religião nesse universo, mas então o que ela seria? Uma ciência? Era esse o conceito que mais me atraía, mas ele não resolvia alguns problemas sérios de narração. A conclusão que eu cheguei é que a magia é uma anti-religião. Enquanto a religião convencional, tanto a dos conquistadores do oeste quanto a dos povos originais se concentravam em implorar o favor de entidades sobrenaturais, a magia agarra essas entidades pelos chifres e exige delas a realização dos seus desejos.
O conceito me atormentou por alguns meses. Se toda magia for um portal e se toda magia estiver usando do poder destas entidades, é de se imaginar que eles não estejam muito felizes com os magos, o que torna tudo muito mais interessante e resolvia boa parte dos meus problemas futuros. Porém eu já tinha demostrado efeitos mágicos que não tinham por origem nenhuma entidade, o que tornaria esse conceito um retcon desagradável, além disso, eu também precisava encaixar meu conceito de Grande Canção do Mundo dentro desse novo pensamento sobre a magia.
Então eu passei a imaginar a magia como um organismo complexo e simbiótico, que existe em uma totalidade de outro plano. Essas criaturas que se apresentam no plano material como deuses e demônios, são apenas a fauna local, capturadas pelo rompimento das barreiras entre os dois mundos e atraídas pela gravidade do ritual mágico. Quanto mais poderosa a magia, maior seria o rasgo deste tecido e mais perigoso poderia ser a entidade que surgisse lá de dentro. A magia, em última instância não escraviza esses monstros diretamente, mas lhes causam grande sofrimento e transtorno, o que inevitavelmente resultará em uma relação rancorosa e vingativa.
Agora eu já sabia a diferença entre a religião e a magia e de quebra eu pude conecta-lo ao papel dos eldani e da Grande Canção do Mundo. As lendas eldani (o nome verdadeiro dos dhäeni) dizem que eles são os habitantes originais do mundo e que viviam nele antes dos deuses dos homens surgirem trazendo o caos e a escravidão. As lendas dos homens também falam sobre a chegada dos deuses ao mundo e sua luta contra as trevas para tornar a terra habitável. Longe de contarem histórias divergentes, ambos estão falando sobre a mesma história, de pontos de vista diferente. Os deuses dos homens, esses dhungeini que não devem ser perturbados, não são os criadores do céu e da terra, são seus conquistadores. São criaturas de vasto poder, orgulhosos, rancorosos e vingativos e eles estão aguardando em algum lugar, pelo dia de seu retorno.
Quando um mago usa magia, ele desafia os deuses. Quando um clérigo faz uma oração, ele os bajula com resultados imprevisíveis. Tudo isso, porém, só é possível graças a Grande Canção do Mundo que é o fluxo natural de élan entre os dois mundos, uma troca não violenta. Os eldani dizem que a canção surgiu com o primeiro eldan e que irá morrer com o último eldan. Eles também dizem que ela é eterna e sempre existiu. O que parece contraditório, mas de fato não é. Quando o último eldan silenciar, quando a árvore moata morrer. Talvez Qaran já não seja mais tão diferente da Terra. Esse será o custo final da magia.
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