Fiquei surpreso quando, dia desses, um autor conhecido me questionou sobre a razão de eu contar as palavras escritas durante o dia. A surpresa veio porquê achei que esse fosse um hábito comum entre escritores. Engano meu.
Sim, muitos escritores contam palavras, não existe nada de novo nisso, mas o hábito talvez não faça muito sentido para quem vê tudo de fora. Mais de uma vez recebi mensagens dizendo que “o que importa é a qualidade, não a quantidade” ou “é impossível manter a qualidade de algo escrevendo na força” e ainda (e essa para mim é a melhor) “a arte não é um sistema de produção de fábrica”.
Nunca dei muita atenção. Estava ocupado demais escrevendo minhas mil e duzentas palavras diárias para me dar ao trabalho de explicar o que estava fazendo. Foi então que a coisa de dois meses as engrenagens da “fabrica” travaram e eu escrevi um total de três mil palavras em pouco mais de dois meses. Quando me queixei da maré ruim, as pessoas voltaram a me questionar sobre essas minhas metas malucas e no motivo pelo qual eu estava fazendo isso.
Sim, talvez exista algo aqui de compulsivo. Não vou negar isso. Gosto bastante de ouvir o tec tec do teclado no silencio da casa. Existe algo de reconfortante em dar materialidade à voz que fala em minha cabeça. Gosto de ver as palavras surgindo na tela, completando o vazio e adoro terminar o dia com uma medida exata do quanto ele rendeu.
Sim, eu também sei que é impossível manter a qualidade do texto, escrevendo com foco na quantidade. Escrevo muito e escrevo muita coisa ruim que muitas vezes não dá em nada, outras vezes só me mata de vergonha, mas algumas vezes revirando nesse caos eu encontro algo bom, ideias que funcionaram, frases que germinam e se tornam outra coisa. É óbvio que nem tudo o que escrevo é digno do jabuti, todo o autor que tenha um mínimo de honestidade consigo mesmo sabe que é preciso garimpar a escumalha em busca dos verdadeiros diamantes. Agora, o que ninguém deduz é que quanto mais matéria bruta eu tiver em mãos para peneirar, maior a minha chance de encontrar alguma coisa aceitável em meio as lascas de lixo. É uma questão matemática.
Os neurocientistas dizem que você precisa de dez mil horas de prática para dominar uma nova habilidade. Ter uma meta diária de escrita te permite criar uma rotina de trabalho para praticar essas horas de aprendizado. Te ajuda a entender o que funciona, o que não funciona, e os caminhos que sua mente percorre. Eu não acredito em dom, não acho que um escritor é melhor do que outro por ter sido agraciado por uma entidade divina. Acredito em prática e estudo; em tentativa e erro; e todos os dias me dou mil e duzentas chances de errar.
Mesmo assim eu estava travado. Como um autor clichê em um filme qualquer, olhando para a tela em branco por horas, digitando coisas sem sentido para ver se alguma ideia pegava no tranco, apenas para apaga-las em seguida. No fim do dia restava a frustração e a esperança de que no dia seguinte seria diferente, no dia seguinte escreveria em dobro, em triplo, para compensar aquele dia vazio, mas no dia seguinte, lá estava eu novamente, no meu inferno particular, vazio e estéril.
Não demorou muito para as pessoas colocarem a culpa do meu silêncio naquela minha rotina insana e por um tempo eu mesmo acreditei que estava apenas cansado e que vinha me forçando demais. O trabalho diurno (aquele que paga as contas) vinha me consumindo e eu tinha pouco ou nenhuma força para me esforçar no trabalho noturno (aquele que me faz vivo).
Durante uma entrevista eu disse uma vez que se você tivesse qualquer dúvida sobre se quer ou não escrever, não escreva. Existe muito esforço e sofrimento envolvido na escrita para quem tem dúvidas sobre o que quer. Se você não acha que escrever é para você, não escreva. Encontre algo que você ame a ponto de superar os seus sofrimentos e deixe esse amor te matar ao longo de sua vida. Esse pensamento voltou a me rondar enquanto eu tentava descobrir o motivo pelo qual eu não estava escrevendo, ao ponto de eu respirar fundo e me conformar: “então, acabou.”
Eu tinha escrito 3238 palavras em Abril que eu odiava do fundo do meu coração e quando Maio começou, eu cheguei a questionar se devia manter a tabela de contagem no meu Bullet Journal ou se devia encher aquelas duas páginas com desenhos ruins e sem sentido.
Foi quando pensei naqueles desenhos sem esforço que eu fazia apenas para não deixar vazios no caderno que percebi o que eu estava fazendo de errado. Entendi porquê Abril tinha sido um mês tão ruim e tive uma esperança de que Maio se tornasse um mês melhor.
Para testar minha teoria, eu abri um arquivo novo, sem referencias ou objetivo, e escrevi a história de um soldado a beira da morte depois de uma batalha. Não demorou muito para eu não saber para onde ir, então deixei a história de lado. Abri outro arquivo e escrevi um pouco sobre minha luta contra a distimia, uma coisa tão tediosa que eu jamais mostraria a ninguém. Na minha terceira tentativa, eu escrevi sobre a luta de um autor com suas ideias, outro clichê batido que precisava sair da minha frente. Quando terminei, eu tinha escrito duas mil palavras em um único dia.
Não havia nada genial naquilo que eu tinha escrito, mas o clichê do autor lutando contra suas ideias tinha tomado uma forma bonita de horror cósmico e não era de todo ruim. Depois de alguns meses sem escrever nada interessante, eu podia olhar para aquilo se não com orgulho, ao menos sem ódio. Um passo pequeno, mas indubitavelmente um passo para frente.
A autocritica é uma das principais razões pelas quais eu acabo ficando bloqueado. Quando eu duvido do que sou capaz, ou quando questiono a qualidade das coisas, é quando as palavras tropeçam entre si e não encontram a saída, mas felizmente eu já tinha a solução diante de mim, bem antes de ter um problema: contar as palavras.
Escrever a primeira palavra, terminar a primeira sentença, alcançar o segundo parágrafo, seguir adiante até o fim da folha, alcançar as quinhentas palavras, pensar em desistir ao chegar as oitocentas. Achar que ficou bom em 950 e se ver, sem nenhum aviso, com mil e cem palavras escritas, o fôlego se ajustando, a mente se tranquilizando. Todo o esforço se tornando em algo fluído e inevitável rumo ao fim do texto. Então tudo acaba.
Contar as palavras me permite romper a barreira da autocritica o que me faz detestar tudo o que faço. É o que me autoriza a errar e continuar adiante. O medo de falhar é o mais paralisante dos temores. Focar no movimento, ao invés do destino, faz com que o caminho seja mais fácil. Primeiro por um passo, depois por mil e duzentos e um pouco mais amanhã. Há quem diga que sou escravo dessa produção maluca, mas eu penso o contrário. Acho o fluxo libertador.
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