Nove da manhã, entre os intervalos da britadeira ouço os funcionários da prefeitura conversando. A rua está cheia de buracos, as sarjetas se transformaram em grandes crateras trincadas que acumulam água parada, excelente para proliferação de mosquitos. A reclamação que eu fiz na prefeitura levou vinte dias para ser respondida, mas ali estavam eles trabalhando. Do escritório, tento relevar o barulho ensurdecedor, sabendo que o motivo é válido.
– Uma pena mesmo! – Uma das vozes continua o assunto. – Queria era já quebrar até lá embaixo, fazer a rua toda de uma vez só.
– Era uma boa se tivesse material, mas mandaram cimento só pra esse trecho, lá na frente tá ainda pior.
– Você precisa de ver a rua que a gente fez ontem, ficou uma coisa linda, dava gosto de ver. Dá nervoso fazer o trabalho assim picado.
– A gente tinha uns dias de trabalho garantido se fizessem a rua toda.
A britadeira roubou o resto da conversa, mas no fim do dia encontrei um trecho da rua todo feito. Bem mais do que a ordem de serviço deles autorizava, muito provavelmente até onde ainda tinham cimento.
Diante dos gigantescos monitores da sala de edição, os técnicos aproveitavam a manhã calma para tomar café. Mantinham uma distância entre si para baixar suas máscaras e agradeciam por tudo ter dado certo no dia anterior. De todos os eventos que eu tinha feito nos últimos tempos aquele, de longe, tinha sido o mais calmo. Numa das telas aparecia o grande palco onde os empresários multimilionários se sentavam para falar sobre vendas, investimentos, capital de giro, seguros, sempre com um sorriso no rosto.
– Estão todos vacinados. – Alguém comentou. – Fizeram o turismo da vacina. Não querem usar máscara.
Na minha tela eu termino o aviso sobre os protocolos de segurança do evento contra a covid. A máscara N95 aperta a minhas orelhas, dando a elas um formato engraçado. Penso no cotonete do teste de covid cutucando no fundo do meu cérebro e sinto vontade de espirrar, mas evito. Tem gente por perto.
– Quanto tempo você estava parado? – Um técnico pergunta para o outro.
– Três meses, já.
– Então esse aqui caiu como uma luva, pra você né?
– Eu já estava desesperado. Aluguel atrasado, mensalidade das crianças. Esse mês deu para segurar um pouco, graças a Deus. Só não posso ficar doente, porquê ai ferrou…
Durante o evento, alguém puxa uma série de elogios a minha paciência. Eu fico acanhado. O assunto se alastra mais do que eu gostaria. Internamente eu dou risada. Penso nas dezenas de vezes em que perdi a paciência por causa de trabalho. A necessidade de que tudo estivesse absolutamente perfeito e a frustração quando alguém não fazia a sua parte. Algo de bom a maturidade me trouxe. No fim, era só trabalho, o importante era o aluguel em dia, a ração no prato das cachorras e juntar dinheiro para viajar se um dia essa pandemia acabar. A vida não era muito mais que isso, e tudo bem.
No uber, voltando para casa, reclamo que não vejo a hora de tirar a máscara. Percebendo seu olhar preocupado, acrescento que não tem nada melhor do que chegar em casa e poder tirar aquilo do rosto. Seguimos o caminho comentando a escolha impossível entre se expor ao vírus para trabalhar ou ficar em casa sem dinheiro para o aluguel.
– Perdi meu irmão por causa dessa merda. – Ele fala e espera a minha reação, que naquele momento é só dizer que sinto muito. – Se o governo quisesse ajudar mesmo, pagava para as pessoas ficarem em casa até estar todo mundo vacinado. Genocida filho da puta.
O montador pediu desculpas pela demora. Tinha levado três horas para montar o meu armário de cozinha e eu fiz o melhor possível para ajuda-lo, apesar de achar que provavelmente o atrapalhei. Enquanto tentávamos identificar as peças, ele disse que estava voltando ao trabalho naquela semana. Tinha ficado 15 dias em casa, porquê sua mulher tinha tido bebê. Ele queria ficar mais tempo em casa, mas ganhava por montagem. Sessenta reais a cada visita, conseguia fazer três ou quatro em um dia bom, mas não era assim todo dia. Seria mais rápido se tivesse um ajudante, mas a empresa proibia.
– Compensa até pagar do meu bolso, porquê eu faria o dobro de montagens, ou até mais.
Recomendei que ele encontrasse o assistente. A empresa não precisava saber e os clientes só iriam agradecer pela agilidade. Ele ficou me olhando como se eu tivesse dito a coisa mais brilhante do mundo. Na saída, deu uma breve enrolada, como se esperasse alguma coisa. Só pensei na caixinha quando a moto dele já tinha desaparecido no fim da rua. Não adiantaria em nada ter lembrado antes. Faz semanas que não entro em um banco. Minha carteira está vazia.
Do outro lado da linha, um cliente antigo pergunta como estou. Eu o atualizo sobre as últimas correrias. Foram tempos difíceis, mas ainda estou na luta. Ele me pergunta se estou disponível para um trabalho. Estou correndo a vários dias e sinto vontade de recusar, mas o dinheiro pode fazer falta no futuro e eu não quero deixa-lo na mão, então aceito. Enquanto preparo as artes, penso em formas diferentes de fazer o mesmo trabalho que já fiz milhares de vezes. Aprendo um ou dois truques novos, sei que é bobagem e que ninguém vai ver, mas me agrada mesmo assim.
Recebo uma mensagem do pedreiro que fez uma pequena manutenção para mim em casa. Não ficou muito bom, mas eu não faria melhor. A mensagem perguntava se eu estava bem e me desejava uma boa semana. Retribui as palavras e pensei em chama-lo para fechar uns buracos na calçada da frente que ficaram evidentes agora que as valetas estão brilhando como novas. Ainda tem bastante coisa para consertar por aqui, mas o jeito é ir fazendo aos poucos.
No domingo passou um homem se oferecendo para limpar a rua se eu tivesse uma ajuda. Lamentei mais uma vez não ter dinheiro na carteira. Preciso mesmo passar em um banco qualquer hora dessas. Ele comenta que conhecia minha irmã, que sempre pagava pra tirar o matinho da rua. Desconfio se é verdade, ele não parece muito lúcido, mas ele sabia até o endereço dela, então confirmo a informação. Peço desculpas por não ter dinheiro daquela vez e torço de verdade para ter dinheiro na próxima. Ele diz que está tudo bem e se despede. Antes de ir perguntar na porta do vizinho, se abaixa e arranca o matinho que crescia na rachadura que eu preciso fechar.
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