O galo canta as seis da manhã. Um galo real e não metafórico. Ele canta em algum lugar longe de casa, mas posso ouvi-lo por conta do imenso silêncio deste vale. Não sabia que podia haver tanto silêncio no mundo. Ouço minha própria respiração, o som das folhas arrastadas pelo vento, mais nada. Só experimentei algo parecido quando no auge das reformas do vizinho, no meu agora antigo apartamento, adotei tampões de ouvido para trabalhar em casa enquanto as máquinas gritavam e moíam tijolos em algum dos muitos apartamentos abaixo de mim.
A casa silenciosa tem uma jabuticabeira no quintal da frente, que dá fruto o ano inteiro e faz sucesso na vizinhança. Fui alertado sobre antigos acordos que permitem a livre colheita por alguns dos membros desta sociedade: crianças, velhos, pássaros e coletores de material reciclável. O alerta veio com tom profético, como uma lei antiga e imutável que prometi que seria respeitada, salvo se minha cachorra encontrasse as jabuticabas primeiro. Até o momento ela não as descobriu, assim como também não descobriu que existe espaço mais do que o suficiente se ela quiser passar entre as grades do portão e ir para a rua.
A vida aqui é calma e boa. Estranho pensar que continuo na mesma cidade barulhenta, onde o trânsito é uma espécie de Deus nervoso que controla a vida das pessoas. Aqui os carros param para você atravessar, as pessoas dão bom dia na rua e os cães tem prioridade no espaço. Estou numa espécie de outra dimensão onde dá até para esquecer o quanto o mundo é horrível. Difícil explicar como isso é possível.
Acho que a casa me recebeu bem. Ela é uma velha senhora, cheia de caprichos e que precisa de cuidados, mas não se opôs em nenhum momento a minha chegada. Examinei suas feridas, e prometi que com o tempo vamos saná-las. Rachaduras, buracos e tacos soltos. É o mínimo que posso fazer em troca da paz que ela me oferta.
A própria gravidade parece diferente nesse lugar. Tudo é mais leve, o espaço se expande, o tempo dilata e nos envolve de forma que caberia a Einstein ou Drummond explicar, misturando matemática e poesia.
Posso ser feliz aqui. Os ganchos na varanda aguardam uma rede. As cachorras experimentam lugares diferentes onde tomar sol. Há muito tempo não durmo tão bem e eu não consigo pensar em absolutamente nada do que reclamar, exceto a distância dos amigos. Não uma distância física (estou a vinte minutos do antigo apartamento e a quinze minutos de uma estação me metrô), não é isso. O espaço que se alarga entre nós não pode ser medido em metros. É uma medida mais etérea e profunda, como se estivéssemos cada um do seu lado desta barreira silenciosa.
Os amigos fazem falta, mas me faz ainda mais falta poder compartilhar essas sensações com eles. Escrever sobre isso ajuda e é um alívio em meio a tantos textos difíceis que precisei escrever nos últimos tempos, mas estou ansioso pelo momento em que possam vir ver por si que não estou exagerando.
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