Tudo o que tenho agora esta embrulhado em caixas. Os livros e as vasilhas de plástico. Os copos e os pincéis de arte. As histórias que vivi e as memórias que não quero contar. Guardei em caixas tudo aquilo que não tem utilidade diária e que mesmo assim não posso me livrar. A caixa de remédios, a régua com símbolos geométricos, as fotos de pessoas com quem não falo mais. Cada fragmento de mim, separado e empilhado conforme sua utilidade e destino. Utensílios de cozinha e festas surpresa. Material de escritório e gargalhadas embaladas por vinho e pizza. Carnavais lendários e uma gaveta improvisada de cuecas e meias.
Não gosto de mudanças de nenhum tipo. Por muito tempo tentei disfarçar esse sentimento, mas o autoconhecimento me trouxe certa paz de espírito. Não gosto de mudanças, simplesmente porquê elas exigem a tomada de decisões e fazer escolhas significa abrir mão de algo. Não sou bom em nada disso. Decidir para onde ir, decidir o que levar, decidir o que deixar pelo caminho, o que embrulhar, o que queimar. Gosto de tudo por igual. A possibilidade do futuro parece ser sempre melhor do que a certeza do presente, mas desaparece ao primeiro passo.
A encruzilhada, porém, é um lugar perigoso. É onde o diabo espera com uma canção e uma proposta. Uma hora ou outra é preciso fazer uma escolha, mesmo que tudo pareça igual no horizonte.
O telefone tocou com a minha irmã do outro lado.
– Estou de mudança. – Ela foi logo dizendo. – Estava pensando se você não está interessado em alugar a casa antiga…
A encruzilhada, porém, é um lugar perigoso. É onde o diabo espera com uma canção e uma proposta.
A resposta tinha que ser rápida. Haviam outras pessoas interessadas. A residência simples, com cara de casa de sítio já tinha se tornado lendária entre os amigos da minha irmã. Vantagens não lhe faltavam, mesmo assim relutei.
– Não é que eu não queria ir… – Expliquei mais tarde para a minha mãe – É que eu preciso verificar algumas coisas.
Que coisas? Sair de um apartamento de concentra metros quadrados para uma casa com quintal, pela metade do valor do aluguel devia ser o suficiente para convencer qualquer idiota, mas eu hesitava. Esse era o meu lar. O som das minhas risadas se entranharam em suas paredes. Minhas lágrimas secaram no seu chão. Era difícil me desapegar de todas essas lembranças.
Mudanças são ótimas para se praticar o desapego, mas eu sou apegado à tudo o que tenho ao meu redor. Sou apegado as memórias dos amigos, mesmo aqueles que desapareceram sem motivo, sou apegado aos pequenos bilhetes deixados nos livros que detestei, mesmo que tenham sido escritos por pessoas de quem não me lembro. Sou apegado as gargalhadas arquivadas em rolhas de cortiça, que se misturaram com as lágrimas e os meus cacos e dos meus amigos, de todos os corações partidos. Sou um acumulador compulsivo de memórias sem utilidade, o que torna minha mudança lenta e trabalhosa.
– Sim. – Eu disse a minha irmã. – Eu topo.
Sou apegado as gargalhadas arquivadas em rolhas de cortiça, que se misturaram com as lágrimas e os meus cacos e dos meus amigos, de todos os corações partidos.
Vivemos em tempos atípicos. Os boletos se acumulam sobre a mesa ameaçando me matar. Sinto minha pele amarelando sem a luz do sol, enquanto definho dentro desta caixa onde eu me guardo em segurança. Não havia nada de racional em querer ficar onde estava. Não havia nada saudável em evitar a mudança. As memórias dos tempos que eu tinha vivido, não estavam naqueles tijolos. As vezes é preciso deixar a realidade se moldar ao nosso redor, outras vezes é preciso fazer caixas e se adaptar a realidade.
Nas caixas empilhadas no chão da sala estão todas as tralhas que eu acumulei sem nem mesmo categorizar. Cabos de celulares antigos, moedas de países que visitei, anotações sobre compromissos perdidos, remédios fora da validade e correios elegantes do tempo da escola. Pedaços de mim que eu acumulei através dos anos, incapazes de formar uma imagem completa. Migalhas de pão que não vão ficar pelo caminho.
Esta é a última Crônica de Segunda que nasce nesta casa. Aqui um capítulo se fecha. Em breve, uma nova história.
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