Em uma sociedade multicultural e inclusiva, faz sentido reeditar Monteiro Lobato sem os trechos racistas? É a questão que vem atormentando os fóruns de literatura nas últimas semanas, depois que uma das herdeiras do autor anunciou uma nova edição das aventuras do sítio do pica-pau amarelo.
O que você faria se no futuro alguém decidisse que seu livro é ofensivo e o editasse?
Foi a pergunta que um dos defensores da obra de Monteiro Lobato me fez quando eu defendi que não via o menor problema em uma reedição da obra sem as passagens racistas. A nova polêmica do meio literário é uma reedição de uma polêmica antiga, ou talvez possamos mesmo falar em uma evolução de uma discussão que foi dada como encerrada a pouco tempo. Aqueles que defendiam a inocência de Monteiro Lobato parecem finalmente ter se dado por vencido, aceitando o racismo do autor, notório defensor da eugenia e do branqueamento da população brasileira. Vencida essa etapa importante, uma nova linha de batalha se desenha. Reconhecido o racismo na obra do autor, deve-se ou não apaga-la?
Existem bons argumentos dos dois lados. Existem aqueles que defendem a obra como um reflexo de sua época e que ao apagarmos o racismo da obra estaríamos promovendo um pacto de esquecimento coletivo, perdoando os deslizes do autor. Do outro lado, defende-se que a obra como está hoje em dia é uma afronta a população negra que naturalmente vai evitá-la, sobretudo como indicação as crianças.
Se Monteiro Lobato estivesse vivo, a solução seria simples. Um editor com um mínimo de amor a própria reputação o aconselharia a suprimir os trechos problemáticos. O autor teria que fazer a escolha entre publicar com aquela editora da forma recomendada ou procurar outra editora, sabendo que teria que lidar com as críticas no futuro. Assim como tantos outros a polêmica atrairia interessados, assim como um batalhão de críticos e protestos. Estando o autor morto e enterrado, com sua obra em domínio público, a quem cabe a responsabilidade sobre a sua reputação?
Dizer que Monteiro Lobato era fruto do seu próprio tempo, é uma verdade incontestável, que o seu tempo o racismo era visto como natural, também não precisa ser dito. Nada disso porém, na minha opinião, serve como ancoradouro para que o seu racismo continue nos dias de hoje. Editar Monteiro Lobato com ou sem os trechos racistas não vai reduzir em nada o problema hoje em dia, mas passa uma mensagem ao que uma sociedade deve ou não tolerar ao cultuar uma personalidade.
A anos existem no mercado edições de Monteiro Lobato que ao receberem nova roupagem, deixaram de lado os trechos racistas. Nunca vi nenhum em nenhum episódio do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a Emília chamar tia Anastácia de macaca e eu duvido que se algo assim fosse transmitido na manhã de sábado da Globo, não houvessem (com razão) pais ofendidos que iriam mover céus e terra para que a emissora fosse responsabilizada, mas por algum motivo existe esse receio sobre a edição da obra do autor, com acusações de censura e revisionismo histórico, como se ao apagarmos as ofensas que o autor deixou como herança maldita, estaríamos esquecendo dos seus erros. Ou, ainda mais engraçado, como se ao publicarmos uma edição mais acurada para o público de hoje, as centenas de edições anteriores deixassem de existir.
Monteiro Lobato era racista. Não existe nenhuma forma disso ser esquecido, a questão deveria ser como e de qual forma nós trataremos do racismo do autor e em qual momento da vida uma criança em formação deveria ser exposta aos seus pensamentos retrógrados.
Verdade seja dita, Monteiro Lobato a muito tempo não figura como texto integral nas escolas. Adaptações e releituras se tornaram a forma mais comum das crianças conhecerem a Emília e a sua turma. As obras mais adultas, como o Presidente Negro, seguem esquecidas pela maioria do grande público. Então que mal faria uma nova edição com um grande e reluzente aviso dizendo: “Esta obra foi editada para o público, suprimento expressões racistas da época”? Aproveitando, porquê não uma edição com o aviso “Texto Integral do Autor, com termos e expressões racistas, não recomendado a pessoas sensíveis?”. Duas edições, dois públicos dando a cada um o direito de escolha. Não existe polêmica, se você não quiser ter razão.
Certo, mas o que eu faria se no futuro alguém decidisse que meu livro é ofensivo e o editasse?
Eu agradeceria. As pessoas mudam, a sociedade muda, os interesses mudam. Se alguém tentasse um dia editar meu livro para se adequar a essas mudanças, eu entenderia isso como uma tentativa de me manter relevante diante de uma sociedade que já me ultrapassou, ao invés de me renegar ao esquecimento onde a maioria dos autores acabam ficando ao longo dos anos. Não tenho medo algum de ser reeditado. Eu mesmo me pego fazendo isso diversas vezes. Boa parte das obras que publiquei já não me representam mais e eu adoraria ter a chance de me redimir em uma nova edição. A cultura é e sempre foi fluída e adaptável, sendo levada de um lado por outro através de edições, releituras, adaptações, novas mídias, sátiras e estudos. Nada se perde. A história não é uma edição do livro, é o conjunto da obra, ao longo do tempo. Não por menos na bibliografia se inclui o ano e a edição do livro, pois sabe-se que basta um novo revisor para a obra ganhar um novo entendimento.
Monteiro Lobato conquistou seu lugar na história e sendo criticado ou não, é impossível negar a sua importância no seu tempo. A discussão sobre se sua obra deve ou não ser editada, chega a ser irrelevante, uma vez que o acontecimento é inevitável. A falsa polêmica tem sido plantada e alimentada como click bait, para inflamar os ânimos mais exaltados, enquanto Emília e Narizinho ganham mais uma edição para se colocar ao lado de todas as anteriores. Francamente não me importo com o que será feito da obra de Monteiro Lobato, mas fico feliz que a sociedade tenha evoluído ao menos para que essa discussão seja aberta e a forma como nós lidamos com o racismo estrutural seja descortinada. O texto integral de Monteiro Lobato hoje em dia é matéria de estudo e pesquisa, interessando muito mais ao acadêmico do que ao público geral. A história faz pouco ou nenhum sentido para as crianças de hoje e uma nova edição com uma Emília não tão racista, não vai mudar isso. Tudo o que essa discussão faz é sugar a nossa energia e ocupar o espaço que poderia estar sendo usado para divulgar novos autores, novas obras, muito mais ligados ao nosso tempo e que podem acrescentar mais a formação de uma sociedade mais justa do que uma edição centenária será capaz de fazer.
Ao invés de gastarmos tamanha energia com Monteiro Lobato, vamos falar sobre Jim Anotsu, Thais Morello, Ricardo Azevedo, Avani Souza Silva, ou mesmo o transgeracional Pedro Bandeira, que com décadas de carreira consegue continuar relevante. A literatura brasileira é muito maior do que Monteiro Lobato. Deixemos a polêmica de lado e vamos à ela. Próximo.
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