“… eu acho que devíamos queimar os livros de uma vez e acabar com essa angústia de morrer aos poucos.”
Nihil de Carolina Mancini, é um daqueles livros que as vezes se perdem na estante. Eu o tinha comprado direto da autora na Casa Fantástica da Flip 2019 e entre uma leitura e outra eu acabei por negligenciá-lo entre as leituras, uma pena.
Uma misteriosa névoa se espalha pelo mundo, devorando cidades inteiras, matando todos aqueles que entram em contato com ela de forma brutal. As pessoas se desfazem e explodem em pleno ar, deixando pouca coisa de si para trás. Mesmo o menor contato com a névoa é capaz de destroçar membros, causar cegueira e erupções violentas de pele. Apavoradas, as pessoas se isolam em suas casas, selando todas as portas, morrendo de fome e desespero aos poucos.
A história é contata através do olhar dos sobreviventes. Cartas, diários, diálogos e todo tipo de fragmento que vai nos guiando pelos acontecimentos. Todos tem uma teoria sobre a origem da névoa e qualquer uma das respostas pode ser correta, o que no fim das contas não importa. O livro é sobre como as pessoas reagem ao estranho apocalipse. Do desespero da fome ao conforto do contato humano.
De muitas formas Nihil é uma obra profética para os tempos em que estamos vivendo, onde o medo de contaminação e o isolamento cobram a cada dia o seu preço. O ar do lado de fora se torna venenoso, a bruma da ignorância governa o país. O desespero faz as pessoas escolherem entre a fome e o negacionismo enquanto vamos lentamente sendo devorados pelos nossos medos.
“Cada rota é uma imensidão de nadas ignorados”
Em muitos trechos, a obra da Carolina Mancini me lembra “Ensaio Sobre a Cegueira” de José Saramago. Uma pandemia misteriosa que se alastra sem explicação revelando o pior e o melhor do ser humano. Ao contrário do estilo longo e denso de Saramago, Carolina nos entrega fragmentos curtos com oscilações de humor que fazem rir, chorar, desesperar e se horrorizar enquanto o mundo fica mais e mais estranho no decorrer das páginas.
Uma das coisas mais impressionantes do livro, pelo menos para mim, foi como Carolina Mancini conseguiu dar um tom único a cada uma das muitas vozes que contam sua história. Cada personagem tem sua personalidade, manias, medos e formas de falar.
Difícil escolher entre quais histórias e personagens são mais marcantes. De casais improváveis formados por causa da névoa, a uma velha mãe assistindo a morte gradual de seus filhos. Da cientista que tenta analisar tudo de forma fria aos trechos quase religiosos de uma garota presa a própria cama. A relação dos personagens entre si é muito verdadeira, cheia de amor, frustração, raiva, cuidado e medo. Medo do abandono, da perda, da solidão, do sofrimento, da fome, da loucura e da culpa. Todas as suas falhas, cicatrizes e erros tornam cada personagem apaixonante por si só.
Se existisse qualquer sombra de justiça neste país, Nihil já teria sido descoberta por algum dramaturgo. É um livro pronto para se tornar uma peça de teatro, intercalando monólogos e diálogos em um palco meio coberto pela névoa e quando alguém fizer isso, não me deem crédito, me deem ingressos na primeira fila.
Minhas ressalvas sobre o livro não tem nada a ver com o seu texto. O projeto gráfico da edição que tenho em mãos é cheio de boas intenções, mas causa mais problemas do que soluções. Cada um dos narradores do livro tem uma espécie de projeto gráfico, baseado na forma com que está fazendo seu registro, alguns escrevem em máquinas, outros escrevem a mão, etc. Na maioria dos casos a leitura flui, mas a tipologia para o texto manuscrito tem uma legibilidade ruim. Outro problema foi o cabeçalho com a palavra Nihil quase apagada em cima das páginas que tornou a mancha de texto estranha e podia ter sido evitado. Consigo pensar em pelo menos duas soluções para a capa que trouxessem a mesma aura de mistério sem perder o impacto no ponto de venda, mas tudo isso é o Diego designer chato como todo designer é quando alguma coisa incomoda. São detalhes que a profissão me faz olhar com mais atenção do que a maioria das pessoas. Na amazon, a edição em e-book já é bem mais atraente e imagino que tenha resolvido também os problemas de legibilidade.
Ao final do livro da autora explica que Nihil foi escrito em formato de blog e eu não consigo nem imaginar o nível de ansiedade que a espera dos capítulos deve ter causado. Comecei a ler e só parei quando as 150 páginas terminaram, não tive outra opção.
Nihil entrou facilmente para a minha lista de melhores leituras do ano e estou certo que vai entrar para as de vocês também, se vocês tiverem coragem.
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