Entrou na mercearia com o mesmo olhar duro que carregou por anos. Passou pelos sacos de cereais, pelos pacotes de biscoito e congelou diante do corredor dos doces. Passou a língua na gengiva entumecida, na bochecha raspada onde a prótese ainda a machucava. Abriu e fechou os dedos, como se ainda pudesse sentir a corda em seus pulsos. A trave em seus joelhos. Os anos apagaram as cicatrizes, mas não as feridas. Seguiu por outro corredor como seguiu com sua vida: um passo trêmulo por vez, olhando por cima dos ombros em eterna vigília. Encontrou a prateleira de bebidas, procurando pela solução de sua insônia. Aquela noite os pesadelos acabariam. Aquela noite conseguiria dormir.
– Martha? É você?
Ela olhou para cima e reconheceu o mesmo sorriso diabólico. Parecia que havia estado sempre ali acima dela, sorrindo e mastigando. Falando com seu enjoativo hálito de menta.
– Eu não acredito!
Tentou se concentrar para acordar. Era só outro pesadelo. Seu corpo imóvel na cama coberto de suor. Tentava se sacudir para salvá-la, mas nada acontecia. Precisava se mover. Precisava mover um único dedo. Era o necessário para escapar de seus medos.
– Você quer um doce?
Ele lhe estendeu um pirulito e ela sentiu a urina descendo pelas suas pernas. O mesmo gesto. O mesmo hálito. Os dentes ainda mais roídos pelo tempo e pelo açúcar da voz doce. “Não chore, não chore, diga a verdade e eu te dou um doce”. Ela não sabia o que dizer para acabar com aquilo e ele lhe arrancava outro dente. Então a confortava.
– Como você me achou? – Sua voz era um sopro de medo.
– Eu? Eu trabalho aqui, Martha. Não sabia? Sou gerente da loja. Não foi por isso que você veio? Sempre soube que você viria.
Tentou se levantar, revelando a poça de urina sob seus pés e sentiu raiva quando ele a percebeu. Sorriu com condescendência. Na cela úmida onde seu colchão mofava ele a chamava de porca nojenta e dizia que cheirava a mijo de gato. Depois acariciava o seu rosto, como se fosse uma garota travessa, enfiava uma bala na boca e a balançava na língua, batendo-a entre os dentes.
– Fica longe de mim. – Martha abriu a palma da mão diante dele, como se tocasse um muro invisível. Ele reparou em seus dedos tortos, quebrados com alicate, na cicatriz do indicador queimado pelos choques elétricos e com isso escondeu os dentes, mas não a curva dos lábios. Era terrível como aquilo o excitava.
– A muito tempo eu queria falar contigo, Martha. Eu queria… me disseram que eu não devia, mas eu queria muito falar contigo, sobre… antes.
Martha deu um passo para trás, sacudindo a cabeça nervosamente. Ficou abraçada a garrafa de vodca o tempo todo, como a um salva-vidas, que a impedia de se afogar. Na cela, ele cobria seu rosto com uma toalha e a afogava com água e querosene.
Deu outro passo para ela, o pirulito estendido a sua frente como uma oferta de paz. Homem-doce. Foi Anastácia quem lhe deu o apelido e imediatamente todos sabiam de quem estava falando. Anastácia nunca saiu daquele porão. Sua família nunca encontrou seu corpo. O desgraçado a sua frente simplesmente se recusou a dizer qualquer coisa de útil. Era ele quem devia estar morto, mas ali estava, sorrindo com seus dentes manchados de açúcar, seu bafo de bala, o tom gentil. Tão bonito quanto cruel.
– Se você encostar em mim, eu vou gritar! – Ameaçou. As lágrimas já se formando no canto dos seus olhos, mais por raiva do que por medo. Protegendo a garrafa em seus braços como se fosse uma criança. Um bebê. Seu bebê. O aborto que ele trouxe enrolado em um paninho sujo para dizer que sentia muito.
– Não diga isso, Martha. Não diga. Sei que tivemos problemas, mas… nós superamos. Não foi? Era um tempo estranho. Um lugar estranho. Mas fomos felizes, não fomos? Eu sei que eu fui. Acho que você também.
– Feliz? Você acha que… – Era incapaz sequer de formular as palavras – Você destruiu a minha vida, seu desgraçado.
As lágrimas queimavam em sua íris. Sua voz ecoando alto pelos corredores, mas ninguém parecia se importar. O homem-doce levantou as mãos, pedindo calma, mas Martha não queria ficar calma. Tinha feito isso por anos. A calma manteve o medo sob controle, mas agora não a queria mais. Ela queria a raiva. Queria a fúria.
– Eu não tinha escolha, Martha, mas fiz o possível para te proteger.
Seu sangue fervia. Não podia estar falando sério. Ela deu um passo em sua direção e ele recuou.
– Era guerra. – O homem-doce tentou se explicar.
Ela o teria matado. Ali, no corredor das bebidas, amassando a sua cabeça com a garrafa. Quebrando-a no chão e usando os cacos para lhe rasgar as tripas. Teria sido bom, mas teria sido muito rápido. Ela havia morrido por meses naquela cela. Andava morta agora. Ele não merecia menos do que isso.
– Eu estou doente. – O homem-doce curvou as sobrancelhas, como um cão suplicante e Martha mordeu os lábios, sem poder acreditar. Insano. Aquele homem era completamente insano.
– Ótimo! Espero que seja câncer. Que essa merda te devore bem devagar. – Martha espatifou a garrafa de vodca aos seus pés, em uma chuva de álcool e vidro e marchou para fora da mercearia.
O homem doce a seguiu, gritando seu nome, mas parou no limiar da porta. À luz do dia o desgraçado era ainda mais bonito, mas bem menos assustador. As pessoas o observavam com curiosidade.
– Você nunca me disse, Martha. Você me amava? Diga a verdade!
Ela ouviu a pergunta e parou. “Diga a verdade e eu lhe darei um doce.” Ele repetia todos os dias, durante as sessões de tortura. Voltou uns passos para olhá-lo nos olhos.– Nunca. – Ela mentiu pela última vez.
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