Sinto falta de livros que já não sei se possuo. De cadernos de notas levados pela água. A enchente parece ter tido um gosto específico por materiais artísticos. Destruiu as aquarelas, arrastou os cadernos de esboços. Levou a pena, o pincel e o lápis. Lavou com água barrenta o que era carvão e fez-se esfarelar o nanquim. Fez do meu mundo página em branco.

Depois da mudança, é tudo novidade. O caminho é novo. A casa é nova. É novo o olhar diante da janela. A paisagem é nova. As coisas vão encontrando seu lugar. As caixas vão sumindo, lentamente, enquanto os objetos se encaixam nos espaços vazios e as ausências começam a se tornar perceptíveis.

Hoje me dei conta da devastação. Procurei por um bloco de desenho e ele não existia. Vasculhei em busca de tintas e as cores desapareceram. Restou o vazio, onde as letras sempre me recebem, e corri para cá tentando salvar alguma coisa, nem que seja a memória do eu fui antes. A fagulha de quem eu sou agora.

Pela janela do escritório tudo é novidade, mas o mundo não tem tinta. É tudo um borrão, como um rascunho cansado. Tento descobrir o desenho entre as manchas e marcas de dedo, um traço surge na memória do gesto. A silhueta lembra vagamente quem eu fui, mas não por completo. Quando toco meu rosto, tudo também é novo. A casa é nova. O olhar é novo. Novas rugas. Novos suspiros. Novos esboços.

A falta que de quem eu fui se reflete nos livros perdidos, nos trabalhos ausentes, no traço inacabado que a água levou e jamais será riscado, deixando em seu lugar a tela branca onde vou pintar algo novo. A página rasgada já não conta sua história. Vou me esquecendo de quem fui e inventando quem eu sou, contando uma mentira nova todo dia e torcendo para que se torne verdade. Assim como ninguém atravessa o mesmo rio duas vezes, também, o rio não lhe atravessa novamente. A água da enchente secou e abandonou o barro úmido com o qual eu moldo quem eu sou agora. Cada nova promessa é um esboço de mim.