As vezes eu começo histórias sem planejamento algum, apenas pelo prazer de encadear as palavras. O faço de olhos fechados e mente aberta, deixando os erros guiarem os acontecimentos, descobrindo detalhes que de outra forma acabariam se perdendo. Essas histórias raramente chegam a algum lugar. Se perdem na multidão de páginas soltas e arquivos sem número. Fantasmas digitais de uma possibilidade jamais concluída, com sorte, vez ou outra, um encontra seu final e é esquecido naquela promessa ridícula que nós autores fazemos de reescrevê-los um dia. Somos uns canalhas promíscuos, sem um pingo de fidelidade, é essa a verdade. Largamos histórias incompletas pelo caminho iludindo-as com promessas de amor eterno, ansiosos pelo próximo rabo de página.
Na maioria dos casos, porém, as histórias ficam pelo seu início, como um flerte de transporte público, uma olhadela e um sonho do que poderia ter sido, não mais do que um sorriso que se troca entre o autor e um personagem e um aceno pela janela da realidade. Segue-se o rumo, o autor sem a história, a história sem autor, talvez vagando solta por ai, como espírito descarnado em busca de alguém que seja seu cavalo (histórias também são criaturas libertárias e sem fidelidade, dispostas a tudo para serem contadas).
Anos depois um lembrete do acontecido: um cortejo de pena, um desejo de ter tido mais coragem, uma pontada de ciúme em ver sua história com outro. Vida que segue, dias que se perdem, você se descobre em um relacionamento abusivo com um livro que te surra todas as noites, mas se engana dizendo que desta vez vai ser diferente.
Anda pela calçada sem olhar para os lados (porquê autores de família se dão ao respeito) e atravessa a rua para não passar em frente a livraria (ai se sua história descobre os sites que você lê de madrugada), cabeça baixa e ouvido duro, para nenhuma anedota lhe contaminar o dia. Você devia estar escrevendo, se martiriza. Devia estar trabalhando, se cobra. Seu livro está em casa, batendo o pé te esperando, mas você não quer voltar tão cedo pois sabe o que te espera.
Ao invés disso você se senta em um café, apenas para passar o tempo. Alisa o guardanapo na mesa, com uma atenção quase perversa. Fica se perguntando de onde veio aquela caneta que está na sua mão. Depois quer saber qual é a cor que a sua tinta tem. Um risco apenas, talvez uma letra, quem sabe um nome. Deus, de onde veio essa frase? Não sou eu escrevendo esse parágrafo. Você tenta se lembrar do livro em casa, mas a lembrança não te ajuda, ele te trata tão mal, ele exige tanta atenção. Está sempre se contradizendo, sempre apresentando novos personagens, sempre exigindo novos capítulos e você está cansado, então se deixa levar pelo momento. Ninguém precisa saber. Quando percebe está escrevendo a história com uma ansiedade quase juvenil, sabe que deve parar, sabe que não pode continuar assim. Você e aquela história não tem nenhum futuro, mas seu coração bate apressado, seus dedos se agarram ao papel, sua mente gira assertivamente em cada uma das bilhões de possibilidades, e quando você pensa que não existe no mundo nada capaz de te fazer parar, ela se vai. Simplesmente se levanta e vai embora. Te deixa onde está, olhando a folha de papel cheia de garranchos. Incompleto. Vazio. O café frio sobre a mesa. Você junta suas coisas com a vergonha de quem se veste diante de um estranho e volta para casa tentando apagar o que aconteceu do seu dia. Liga o computador, dá oi ao seu novo capítulo, lê novamente aquele trecho que tinha estado travado. Suspira, já está tão tarde. Pensa em virar para o lado e dormir, talvez amanhã o dia seja melhor. Tira a camisa, tira a calça, uma bolinha de guardanapo cai do seu bolso e rola para debaixo de sua mesa para se juntar a tantas outras. Seu livro finge que não vê. Eu fiz novamente.
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