

Tenho pensado bastante sobre a fake news e como ela causou o fim do causo. Toda cidade pequena tinha uma praça onde as pessoas se encontravam para conversar, já que não tinha nada para fazer em casa. Nessa praça tinha uma igreja, um botequim, com sorte uma sorveteria, uns velhos jogando dominó, um monte de adolescente matando o tempo e uns caramelos balançando o rabo de um lado para o outro na esperança de que alguém deixasse cair algum petisco interessante. Quase todo mundo fumava, incluindo os bêbados, os velhos, os adolescentes, o padre e o caramelo e para acompanhar o cigarro, as pessoas contavam histórias.
Havia as fofocas diárias, sobre quem estava namorando quem, quem havia conseguido emprego, quem havia perdido emprego, quem tinha se mudado, quem tinha voltado, quem ia se casar, quem ia ter filho, quem tinha repetido de ano, quem ia pra faculdade, a casa de quem ia ser reformada, o primo de quem ia vir fazer visita.
Também havia as histórias mirabolantes, quem tinha sido perseguido pelo lobisomem, quem havia sido arrastado por um peixe de oitenta quilos, quem havia sido preso por xingar o delegado, a prima de quem havia virado homem, o fantasma de quem tinha aparecido na estrada.
Algumas histórias eram verdades, outras eram mentira, mas a conversa seguia com acusações de “Cê é mentiroso para caralho” e semblantes indignados: “Juro pela minha mãe mortinha!”. A vida seguia, uma mentira por vez, um causo toda semana. Vencia o entretenimento: a história que era mais comentada.
A internet primeiro matou a praça, depois o cigarro, ai foi a conversa, com ela morreu a verdade. E quando a verdade morreu, tudo virou mentira. Vieram os sites cheios de notícias falsas, os boatos de whatsapp, as mamadeiras de piroca, as manchetes do sensacionalista. Quando a gente achava que não dava para acreditar em mais nada se não tivesse vídeo, veio a IA com as velhinhas tricotando monstros, os jacarés com cabeça de tubarão, os goldens tomando capote de skate e rolando no chão para terminar mostrando o dedo. Tudo parecia verdade, por consequência, tudo se tornou uma mentira.
Um dia desses eu vi uma matéria sobre uma velhinha que tinha treinado seu gato para roubar os vizinhos. A matéria falava sobre a quantidade de dinheiro encontrado com a velha dos gatos e eu achei a história tão divertida que fiz um comentário na publicação: “A autêntica mulher gato.”
Não demorou muito para um amigo vir me alertar que eu tinha caído em uma fake news. O tom era de perigo e indignação. Eu devia prestar mais atenção para não acreditar em qualquer coisa que estivesse online. Achei graça. Não respondi o comentário, achei desnecessário.
Dia depois eu vi um vídeo de uma criminosa sendo interrogada pela polícia. As mãos para trás, os olhos baixos, a cara de uma criança de doze anos. O crime dela era dar golpe em homens mais velhos. Marcava o encontro, colocava boa noite Cinderela na bebida deles e os roubava. No fundo da cena, dava para ouvir a voz de um homem dizendo que foi assim mesmo e que ele era casado. O plot twist? A criminosa, na verdade, tinha vinte e dois anos, o policial falava espantado.
Achei graça. Abri os comentários e havia uma enxurrada de homens indignados. Outros estranhamente diziam que queriam cair naquele golpe. Fiz então um resumo. “Deixa eu entender, a mulher marcava encontro com pedófilos, roubava eles e acabou presa? Soltem essa mulher.” O que seguiu foi uma chuva de likes e respostas, a maioria me dando razão, alguns poucos querendo me denunciar para a polícia, uns bastante suspeitos dizendo que não é porque era menor de idade que era pedofilia e um canavial tentando me alertar que a história era mentira, que eu estava caindo em uma fake news.
Minha reação foi responder alguns dos elogios e os primeiros idiotas que me disseram que eu não sabia o que era pedofilia (spoiler: pedofilia e estupro de vulnerável, são coisas diferentes, vale pesquisar antes de chamar o coleguinha de burro). Mas o que mais me surpreendeu, foram os comentários mais uma vez me alertando que aquilo não era real. Que era uma atriz (que tinha provavelmente uns doze anos, o que deixa tudo ainda mais perturbador, na minha opinião), e que não havia crime.
Ainda recebo resposta deste comentário, que já está chegando a 30mil likes. Tento ignorá-los, não acho que fazem sentido.
Nos dois casos, em nenhum momento eu disse que acreditava na história. Nos dois casos meu comentário continuava valido sendo verdade ou mentira. Nos dois casos houve uma pressa em me chamar de ingenuo para invalidar aquilo que eu disse. Nos dois casos eu resolvi não bater boca, porque eu sabia que na internet não importa quem está certo, importa só quem fala por último e eu já cansei dessa briga.
Foram esses dois eventos que me fizeram entender que a fake news acabou com o causo. As fabulas de moral do passado já não fazem sentido, pois não estão ancoradas na verdade. Se você contar a história de uma garotinha que atravessa a floresta para visitar a avó e acaba sendo encurralada por um lobo disfarçado de velhinha, as pessoas vão pedir provas, testemunhas, três fontes e concluir que não é verdade, pois os autores são esquerdistas. A verdade se tornou exigência primária de tudo o que for escrito.
Não vou dizer se isso esta ou não está correto. Em um mundo onde o presidente americano divulga um vídeo dele passando com um jato e jogando merda nos protestantes, estamos todos alérgicos a mentira. Hiper reativos a qualquer desvio da verdade, mas essa reação inflamada ao causo me faz pensar que estamos perdendo alguma coisa no processo. Algo que ainda não sei definir.
Sou um ficcionista. A maior parte do tempo, escrevo coisas que não são verdade. É até justo dizer que eu minto para me expressar. Então dá para entender minha preocupação. Minha vida é contar causos e através destes causos, livremente inspirados na realidade e distorcidos ao meu gosto, eu tento mostrar uma verdade maior, que está acima daquela história. Eu não invento fatos sobre uma pessoa que existe, nem tento enganar ninguém com uma falsa verdade, mas tudo o que eu faço é de mentirinha, é um causo, é poeira ao vento. Na maior parte do meu tempo na internet eu também quero receber fatos para poder descobrir a verdade, mas existem momentos que os fatos não são importantes. Em alguns momentos, ser verdade ou mentira não altera o núcleo da história e é com a história que eu me importo.
Este texto foi escrito por uma pessoa 100% real, com 80% de fatos, 10% de invenções e outros 10% de achismos. Você decide qual parte é o que.
						
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