Eu tive sorte
On March 23, 2025 | 0 Comments
person splashing water
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Eu tive sorte. A água da enxurrada baixou, revelando a lama sobre o chão de taco. Do lado de fora, gritos de socorro eram abafados pelo som ininterrupto da chuva. Eu empurrei uma estante para o lado para passar, vendo os livros se espalhando pelo lamaçal. Minha cabeça girava, presa em detalhes, como a edição ilustrada de Moby Dick que eu nunca havia aberto e agora aparecia encalhada ao pé do sofá, em um fim que até Ahab consideraria melancólico.

Enquanto gritava para a vizinha em cima do telhado que eu tinha uma escada, me dei conta de que eu estava vivo. Podia ter sido arrastado pela água, ficado preso sob algum móvel, golpeado por um tronco de árvore, deus o livre perdido uma das minhas cachorras. Podia ter perecido de tantas maneiras diferentes, mas estava vivo. Zanzando em meio as ruínas do que era uma simpática casa térrea escondida em um dos bairros mais boêmios da cidade de São Paulo. Eu tinha sobrevivido. De novo.

Uma semana antes a chuva havia quebrado meu braço. Durante um temporal eu tive a brilhante ideia de verificar uma calha que parecia entupida, a escada virou e a gravidade fez o seu papel, me abraçando com um metro e meio de força peso. Fiquei deitado de lado, com a chuva caindo sobre mim, enquanto via o sangue da minha mão cortada se misturando com a poça d’água. Meus dedos tinha sido escalpelados em feias camadas, mas o que me preocupou mais foi a dor no meu ombro. Me levantei, lavei os dedos, embrulhei a mão com gaze e avisei no trabalho que eu não conseguiria entregar o projeto que eu estava tocando. No caminho do hospital, o motorista me lembrou da sorte que tive de não bater a cabeça.

A endocrinologista parecia confusa. “Mas porque você veio aqui?”, ela parecia examinar a minha ficha na tela do computador. Tomei folego ganhando tempo para organizar a história.

– Eu tive um tumor e fiz radioterapia. Preciso fazer o acompanhamento para saber se o tratamento deu certo.

– E onde estão os exames?

– Os exames eu perdi em uma enchente.

– E quando foi o tratamento? Por quê só veio agora?

– Por quê primeiro eu quebrei o braço, no dia que eu tinha marcado consulta, depois eu tive a enchente. Depois não conseguia horario pra consulta.

Ela queria saber como descobri o tumor e eu tomei ar novamente e então explodi em uma gargalhada. Parece uma bola de neve. Não tem como contar a história pela metade e quanto mais eu tento explicar, mais absurda a história fica. Quando finalmente terminei de contar a minha história, ela balançou a cabeça. “É, não está fácil.”

Semanas antes eu estava no meio dos destroços da minha vida. Olhando tudo o que eu tinha e havia sido carregado pela água. Meu telefone pipocava de mensagens. Havia postado um video da minha situação e a resposta veio quase que imediatamente. A água nem tinha terminado de baixar e já tinham organizado uma vaquinha, um mutirão e doação de móveis. Minha cabeça ainda girava tentando entender o que tinha acontecido e eu já tinha um lugar seguro para as minhas cachorras. Uma cama pra dormir. Um plano de emergência para as próximas 24 horas. Eu tive sorte.

Quando voltei no dia seguinte, os voluntários raspavam a lama do chão de taco. Eu, de braço quebrado, mal podia ajudar. Me cabia assistir enquanto conhecidos e estranhos reviravam os escombros da minha vida selecionando o que dava ou não dava para salvar. Vez por outra, alguém me perguntava sobre um item específico que tinha sido danificado pelas águas. Parecia tudo perdido, eu não fazia questão de mais nada.

No fim daquele dia, dois terços dos meus livros tinham sido levados pelo caminhão de entulho. Minhas estantes, minha cama, meus móveis. Numa caixa haviam restado os aparelhos eletrônicos que valia a pena tentar salvar. Os HDs com a história de uma vida inteira. Os documentos que haviam aparecido milagrosamente boiando no meio da enxurrada. Roupas que estavam no alto do armário e não tinham saído secas. Uma vizinha me encontrou na rua e me entregou uma foto minha com uma ex namorada, que havia aparecido boiando no quintal dela. Fiquei me perguntando onde a enxurrada havia encontrado aquela foto.

Quando conto a história toda, ou pelo menos a versão resumida, as pessoas curvam as sobrancelhas em sinal de piedade. Eu contorno a situação lembrando que eu estou bem e que minhas cachorras estão bem. O resto é reconstrução.

Já arrumei um novo lar. Nem de longe ele tem o charme de uma casinha de vó em uma rua sem saída na vila mais badalada de São Paulo, mas tem janelas amplas, muita luz e espaço de sobra. Já comprei geladeira e fogão, ganhei sofá e cama e terminei de juntar o que restou dos meus livros, tudo mais uma vez sob o mesmo teto. Ainda não me mudei, mas é questão de dias e espero em breve começar a receber visitas. Tenho muita gente para agradecer e muita coisa para comemorar. Estou bem. Minhas cachorras estão bem. O resto é reconstrução. Eu tive sorte.

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