A recepcionista me espera com a folha em mãos. Já sei onde devo assinar. Ela me entrega um crachá que vai ficar visível por vinte minutos ou menos, mas que assumo como parte da rotina. Na fileira de cadeiras, todos dão bom dia alegremente. Ainda acho estranho ver tamanha simpatia em uma recepção, mas estamos todos no mesmo barco radioativo.
Sentado na cadeira da ponta eu estranho a voz nova do loro José no programa da Ana Maria Braga. Desde o meu primeiro dia de tratamento venho lutando para ligar a voz a “pessoa” do boneco. Mais grave e menos brincalhona, a nova voz parece mal costurada com a fantasia. Não consigo prestar atenção, nem deixar de prestar atenção. Meus olhos ardem, eu os fecho e ouço as nulidades da manhã. Faltam nove sessões. Dez com a de hoje. O doutor passa por mim como se jogasse pétalas pelo caminho. Tudo parece projetado por um guru de good vibes. Dá até para esquecer por que estou ali, mas nunca por muito tempo.
Durante minha primeira avaliação, o radiologista examinava a tomografia e explicava os riscos do tratamento. Enjoo, falta de apetite, cansaço, perda de cabelo, etc. O que mais me preocupava era uma possível perda de visão.
– Mas você já teve perda, não é?
– Não. Enxergo tão mal como sempre.
– Nenhuma perda recente?
Nenhuma. Senti os olhos inchados durante um tempo e eles parecem mais irritados no ar condicionado, mas continuo enxergando no limite da minha miopia.
– A maioria das pessoas vem para cá quando começam a enxergar mal. Como você veio parar aqui?
– Tentando desvendar um paradoxo e gargalhando como o Coringa. – Sorri. – Crise psicótica.
Ah…
Me lembro vagamente de ser colocado na máquina de tomografia e da preocupação dos médicos ao meu redor, mas eu não conseguia parar de gargalhar. Acabei sedado e amarrado na maca. Horas mais tarde eu ainda tentava desvendar o paradoxo. A tomografia estava limpa, exceto por uma pequena mancha na glândula hipófise. Não relacionado. Fui medicado e internado. Quando saí, refiz os exames e descobri que não era uma mancha tão pequena assim. Doze médicos depois, ali estava eu na recepção da radioterapia, com outros pacientes com câncer, pensando positivo. O doutor me faz uma breve lista de efeitos colaterais e me instrui sobre os próximos passos. Decoro tudo sem muito entusiasmo.
– Vamos lá, Diego? – Todos sabem o meu nome. Não sei o nome de ninguém. Todos me dão bom dia, perguntam do tempo lá fora, me oferecem água, cobertor, melhoras. São tão gentis que até me esqueço de que levo uma hora para chegar ali, quase sempre com um motorista bolsominion discursando sobre como seria bom matar bandido. Todos são tão simpáticos ali dentro que eu podia estar em um resort all included, em alguma praia descolada do Nordeste.
Penduro minha bolsa, meus óculos, me reconheço no controle do visor, me deito e sou preso na maca por uma máscara com o formato exato do meu rosto, moldada para que eu não consiga me mexer de forma alguma. Tão precisa que eu não posso nem fazer a barba, nem cortar o cabelo. O resto do procedimento eu faço literalmente de olhos fechados: controlar a respiração para não entrar em pânico e ouvir os avisos sonoros enquanto um feixe de radiação perfura meu crânio em busca da origem de todos os meus problemas. O procedimento todo leva menos do que quinze minutos. Logo estou de pé e me despedindo novamente.
– Menos uma. Até amanhã!
Outro carro de aplicativo, outro motorista bolsominion. Uma hora encontrando forças para seguir o resto do dia. Não é nem meio-dia e eu já estou exausto. Tem sido assim todos os dias do meu último mês. Religioso e certo, como um relógio. Começo a trabalhar pelo celular. Aquilo me distrai dos pensamentos menos agradáveis, o que, por outro lado, enlouquece a minha psicóloga. Não a culpo. Tenho minha doença e meu trabalho. É tudo sobre o que conversamos e um disfarça o outro. Deve ser tedioso para caralho.
A recomendação dela é que eu me distraia com outras coisas, veja os amigos, encontre um passatempo, pratique esportes, volte a escrever. Eu tento tudo isso, mas a luta me atrai cada dia menos. As coisas vão perdendo cada dia mais Importância, mas ainda luto. Este texto sou eu lutando mais um dia.
Amanhã, durante a minha sessão, posso dizer a ela que escrevi. “Sobre o quê?” ela vai me perguntar. Sobre a minha doença e o meu trabalho. Vou responder. Ela vai achar engraçado e se dar por vencida. Não se pode ganhar todas.
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