Está fazendo quase um ano que morri. Lembro vagamente dessa época, exceto pela sensação de urgência e a certeza do fracasso. Tudo é um borrão de sentimentos. Eu chorava no banco de trás de um Uber com a certeza de que o mundo era uma merda. O motorista terminava de contar de como havia sido seus últimos dias com a avó. Choramos juntos, dois desconhecidos com o mundo em pedaços, eu desci do carro e me questionei o que estava acontecendo comigo.
Uns dias antes eu tinha perdido a cabeça pela demissão de um colega. Outro prego numa sequência de acidentes que vinham me minando as forças. Uma briga com meu pai, um amigo doente, outra noite trabalhando, meu livro que não andava, uma discussão com um vizinho. Sempre sozinho, sempre doente. Pressão alta, internação e fuga do hospital. Lembro de tudo aos cacos, que manuseio com cuidado para não me cortar em suas bordas, sem saber qual desses eventos foi a gota d’água.
Um ano depois está difícil dormir. Coisas demais me lembram aquela data e eu sinto meu peito apertado com a ansiedade. Escrever ajuda. Escrever sempre ajudou. Então estou aqui tentando exorcizar algo que ainda não tem nome definido, mas que nasceu da obrigação que sinto em salvar o mundo. Foi um ano complicado onde eu precisei remontar o quebra-cabeça de quem sou agora. Alguém mais distante, que tem medo de espinhos.
É muito fácil se deixar deslizar para a insanidade. De um instante para o outro o mundo ganha outro sentido e as coisas se encaixam perfeitamente na história que sua mente quer te contar. Acho que eu nunca irei saber se perdi a razão devido à privação do sono, o profundo senso de injustiça da demissão do meu colega ou a sensação de impotência diante da doença do meu amigo. É tudo uma mesma névoa onde eu despedaço o telefone contra a parede e tento explicar para um médico que eu não estou conseguindo pensar direito. No momento seguinte estou na praia e o mundo parece perfeito.
Foi olhando para o reflexo do sol nas ondas em um fim de tarde que eu me dei conta de que estava morto. Meus amigos estavam sob o guarda-sol discutindo minha última crise e eu ouvia as crianças brincando na água, enquanto sentia o calor morno em minha pele. O vento era suave em meus ouvidos e era tudo tão delicado que concluí que não podia ser real. O paraíso só existe para a morte.
A ideia de estar morto se tornou uma verdade no mesmo instante. A alegria com que eu recebia aquela notícia era apenas mais uma prova de tudo o que tinha acontecido. O ataque de pânico tinha provavelmente sido mais do que parecia e naquele fim de tarde, em uma praia no litoral norte, eu precisava entender minha nova situação para continuar adiante com a minha jornada. Tudo ao meu redor era criado pela minha mente, meu paraíso personalizado, com algumas das pessoas que eu amo.
Não era ruim. Se aquela era uma amostra da morte, posso dizer com certeza que existe conforto. Meu corpo completamente exaurido bebeu com desejo as gotas de endorfina que a minha morte produzia e eu aceitei tudo com a certeza feliz de que estava sendo agraciado. O conhecimento da minha morte era só inicio da minha jornada e logo fui jogado do paraíso para o inferno.
Mais tarde alguém me explicaria que eu estava tendo um surto psicótico, mas eu não fazia a menor ideia disso enquanto o surto acontecia. A realidade ao meu redor era fluída, como se eu estivesse bêbado, ou em um sonho, e ia se transformando à medida que eu a inventava. Se eu ficasse pensando que um casal estava falando de mim, eles automaticamente estavam falando. Se eu imaginasse que as pessoas fossem demônios, elas automaticamente tinham seus rostos desfigurados. Eu não conseguia falar sobre aquelas coisas, algo trancava a minha voz e eu passei a gaguejar. Só conseguia me comunicar por escrito, só nas letras meu mundo ganhava paz. Foram horas infernais.
Tenho poucas memórias do que aconteceu em seguida, mas de alguma forma eu consegui pedir ajuda. Meus amigos entraram em contato com minha psicóloga e ela com meu psiquiatra. Da praia eu fui levado diretamente para o hospital, delirando o tempo todo com a solução de um paradoxo e a risada do Coringa. Havia toda uma equipe de reportagem na porta do hospital a minha espera. Todos ansiosos que eu fosse passar por um teste.
Não passei no teste. Fui reprovado pelos médicos. Tomei doses cavalares de remédios cujos nomes nem cheguei a saber. Fui amarrado, anestesiado, amansado e empacotado para viagem e depois de algumas paradas e da chegada dos meus familiares, fui levado para uma clínica onde eu não ofereceria nenhum perigo para mim ou para os outros.
Ainda é difícil falar de tudo isso, mas fica mais fácil a cada dia. Quando finalmente saí da clínica, tudo era um borrão, mas as coisas foram lentamente se encaixando, embora tenha certeza de que a imagem que eu estou montando agora não é a mesma imagem de quando me destruí. Todo dia encontro uma peça nova do quebra-cabeça que me tornei e ainda não sei quando isso vai acabar.
Hoje tomo meus remédios, me consulto com psiquiatra e com a minha psicóloga duas vezes por semana. Tenho aprendido que não sou definido pelo meu trabalho e tenho tentado não tomar todos os problemas do mundo como se fossem meus. Sou uma pessoa menos arrogante, reconhecendo que não tenho poder para mudar tudo e que coisas boas e ruins irão acontecer longe do meu controle. Ainda não estou bem, mas estou no processo, dando um passo novo a cada dia.
Escrever ajuda. Escrever sempre ajudou. É por isso que estou escrevendo agora.
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