Na fila da padaria, enquanto eu pensava com horror em quanto ficaria o valor da compra do supermercado, ouvi uma senhora tentando chamar a atenção de um dos atendentes. Era cedo, o mercado não estava muito cheio, os funcionários corriam de um lado para o outro arrumando as coisas para o inicio do dia, e a senhorinha, minúscula em uma blusa de lã grande demais, cabelos ralos mas muito bem cuidados, balançava a mão na sessão de frios, até que um dos rapazes lhe deu bom dia.
– Menino – ela tinha idade o suficiente para se dar a essa liberdade–, essa sardela é boa?
O rapaz ajustou a máscara no rosto, como se ela o impedisse de ouvir o que foi dito. A senhora bateu com o dedo ossudo no vidro, para a compota imensa de sardela.
– Essa aqui! É boa? Que algumas não são boas. Comprei uma outro dia e era muito ruim. Queria saber se essa é boa.
O rapaz ameaçou levantar os ombros sem resposta, mas a experiência no trato com o cliente lhe impediu. Já conhecendo o procedimento e sabendo onde tudo aquilo iria terminar, se adiantou para a velhinha que repedia a pergunta lentamente, como se o outro não fosse capaz de compreendê-la. “Malditas máscaras!”
– Só um minutinho que vou chamar o gerente para falar com a senhora. – Sacudiu a mão alto, como em um passe de mágica conjurando o gerente diante da senhora, ao mesmo tempo em que desaparecia em uma explosão de fumaça.
– Pois não, senhora. Posso ajuda-la?
– Queria saber se essa sardela é boa.
O gerente se abaixou para olhar o pote que ela indicava, balançou a cabeça para confirmar o entendimento, colocou-se ereto novamente para olhar a senhoria por cima do balcão e sorriu.
– Vende bem.
– Sim, mas eu quero saber se ela é boa. Porquê eu comprei uma que não era muito boa e eu não vou comprar se essa não for…
– Não sei, senhora. Nunca experimentei.
Minha vez na fila do pão, que era diferente da fila dos frios, já tinha chegado, mas eu estava tão atordoado por aquela conversa que pedi para a pessoa de trás passar na minha frente.
Tentava adivinhar quanto tempo levaria para alguém colocar um pouco da sardela em um pão e dar para aquela senhora provar resolvendo de uma vez a dúvida dela, mas a situação levantava também outras histórias. Era uma pergunta simples, uma situação banal, mas no subtexto dizia muito.
A senhora que era fã de sardela, denunciando uma certa simpatia por pratos italianos, sua posição na classe média, um passado de pratos generosos e uma realidade de pouco dinheiro para arriscar experimentar; o atendente que não sabia responder a pergunta porquê provavelmente nunca tinha experimentado sardela em sua vida, dificilmente sabia do que era feito e talvez se sentisse mal com a pergunta sobre algo que estava muito além do que ele poderia pagar com o salário que recebia; o gerente que tinha alguns números para responder a pergunta, e a tratava de forma robótica, quase tediosa, sem expectativa de resolver absolutamente nada, torcendo apenas para que o dia acabasse logo.
Enquanto isso a senhora já tinha passado para a fase dois, que era questionar ao gerente e outros funcionários se eles já tinham comido a iguaria. Cabeças balançavam, constrangidas, negando a sugestão como se fosse algum absurdo e eu somei ao topo da minha filosofia matutina o dono do supermercado que devia oferecer aos funcionários uma degustação dos produtos para que eles pudessem orientar os clientes.
Eu pedi meus pães. Vieram quentes, o que era uma pena, pois eu comeria um só e congelaria o restante para tomar café durante a semana. Dei um passo para fora da fila e percebi que tinha perdido a vontade de comprar frios, mas parei um instante ao lado da senhora, mesmo assim, enquanto os funcionários respiravam pacientemente.
Depois de uns segundos ela finalmente me viu. Eu sorri.
– A sardela é boa. Pode levar. – Disse antes que ela me perguntasse algo. A senhora balançou a cabeça, um pouco assustada pela súbita intervenção.
Derrotada, percebendo que estava andando em círculos, pesou 150gr, colocou na cestinha e deu bom dia. O atendente balançou a cabeça e sorriu, aliviado.
– O que manda hoje, chefe? – Me perguntou.
– Hoje nada, valeu.
– Nem a sardela? – Permitiu-se uma risadinha cúmplice.
– Não sei, ela é boa? – Devolvi.
Fiquei com vontade de comprar um pouco e compartilhar ali mesmo com todos eles, para matarmos a dúvida, mas então eu vi o valor e mudei de ideia. Talvez no próximo mês. Ou no outro.
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