Quem já leu alguma dos meus livros de fantasia já deve ter percebido que os votos são importante no Império. Os votos estão ligados a religiosidade das pessoas e eu diria que é a marca registrada das tradições do Império, sendo mais presente até do que a canção dhäeni. Mas o que são os votos?
Enquanto pensava sobre a religião do povo tinha muitas dúvidas, mas uma só certeza. Eu queria escapar da fórmula maniqueísta de luz versos trevas, bem versus mal e a partir disso, comecei a pensar sobre como as pessoas seriam julgadas pelos seus deuses.
Votos, ou promessas, alianças, juramentos, são elementos bastante comuns na religião católica, onde as pessoas fazem uma promessa em troca de algum milagre recebido por um santo. Não cortar o cabelo até conseguir trocar de carro, peregrinar a pé até outra cidade para receber a cura da doença de um filho, não comer chocolate até finalmente trocar de emprego. São sacrifícios de fé, para alcançar o milagre divino. Em outras religiões temos tradições similares, oferendas para os orixás, incensos para os ancestrais, ofertas para o cristo pentecostal, etc, mas a verdadeira inspiração para os votos do Império veio do hinduísmo.
Muitos religiosos Hindus fazem sacrifícios pessoais em nome da sua devoção, porém esses sacrifícios não são feitos em nome de algum desejo terreno e sim em nome da sua elevação espiritual. Promessas como jamais tomar banho, nunca cortar o cabelo, ou permanecer na escuridão para sempre, são vistos como uma prova gigantesca da sua fé, tornando estes homens quase santos em sua comunidade.
Sadhu Amar Bharati, por exemplo, ficou famoso por manter o braço direito erguido por mais de 40 anos. O gesto era ao mesmo tempo um sacrifício para a Deusa Shiva e um protesto contra os conflitos daquele mundo. O braço Sadhu Amar Bharati, calcificou no lugar e seus músculos atrofiaram, tornando-o inútil e seu gesto inspirou outros homens a fazerem o mesmo.
Todas as pessoas do Império, quando fazem 16 anos são registradas oficialmente como cidadãos, tornando-se plenamente responsáveis por seus atos. O registro formal da sua maioridade é feita pelo prelado da região, um administrador nomeado pelo Império e a partir de então a pessoa é considerada como um adulto, mas essa é só a parte burocrática da história. O aniversário de 16 anos também marca o seu dia do voto, apresentando o adulto para os seus deuses, dando início a sua própria jornada religiosa naquele mundo.
No dia dos seus votos, perante a sua comunidade, o cidadão do império faz uma promessa de sacrifício em nome de um deus em específico, esperando atrair os seus favores naquela terra e no mundo mais além. As promessas podem ser algo simples, como jamais cortar o cabelo, ou complexas como mover uma montanha do lugar, mas a partir do momento em que os votos são feitos eles jamais devem ser quebrados, ou o fiel estará desafiando a vontade dos deuses naquela e na próxima vida.
Tendo sendo feito publicamente, existe uma pressão da própria comunidade para que as pessoas se mantenham fiéis aos seus juramentos e, é claro, existe também a chance das pessoas serem sabotadas por inimizades para não conseguirem cumpri-los. Para os deuses não importa se você foi obrigado a romper seu juramento e comer carne, se a sua promessa foi esta, você precisa entender que o esforço de alguém em enfiar carne na sua boca é parte do teste que os deuses estão lhe enviando para testar sua força de vontade. Um homem não é perdoado por ter rompido seus votos, mesmo que seja sem querer, neste caso o seu acordo com o deus foi rompido, mas pode ser refeito por um sacerdote que lhe permita uma expiação dos seus erros. A forma que esta expiação acontecerá caberá apenas ao sacerdote em comunicação com o Deus, dizer, mas geralmente envolve um grande sacrifício momentâneo. Como doar toda a sua riqueza, ou fazer quarenta dias de jejum, ou ainda matar uma fera selvagem sem armas. O sacrifício de expiação são brutais e muitas vezes põem em perigo a própria vida do fiel. De forma que se passar por aquilo, é prova mais do que suficiente de que recebeu o perdão do Deus.
Não existe outro pecado além de quebrar os seus votos. Os deuses encaram isso como um desafio à sua autoridade e podem punir o apostata tanto em vida quanto na morte. Em vida trazendo toda sorte de mal feitos, não só para a pessoa como para aqueles que estão ao seu redor. A punição dos deuses pode envolver a doença e morte de pessoas queridas, a perda de bens materiais, ou ainda pequenas punições como uma coceira que não passa nunca, mas essas punições são apenas um alerta para que o devoto volte para o seu caminho através de uma expiação. Caso não o faça e ele acabe morrendo como apostata e que terá início o seu verdadeiro tormento.
Não. O apostata morto não é enviado para o “inferno”. Embora esse lugar exista na religião do Império, ele não passa de uma prisão destinada aos deuses que foram derrotados durante a conquista daquele mundo. Aos espíritos que chegam ao outro mundo antes de expiar seu pecado, a punição é a indiferença. Qiron, o plano espiritual, é fragmentado naquilo que os religiosos chamam de Domínios. São como ilhas, pertencentes a cada Deus e onde sua vontade é soberana. Ao morrer e ser cremado, o apostata chega ao outro plano sem ser recepcionado por nenhum dos domínios. Acaba então condenado a se afogar no Mar da Agonia, o lar de monstros inomináveis e espíritos enlouquecidos, que irão devorar e destroçar o apostata por toda a eternidade em um ciclo sem fim de sofrimento.
A maioria das pessoas cumpre seus votos. A maioria dos votos, também, são fáceis de serem cumpridos. Isso lhes garantirá a entrada no Domínio do deus ao qual escolheu servir e lá, como aqui, ele cumprirá as suas ordens, sem fome ou doença, podendo reencontrar os parentes devotos. Os deuses dão especial atenção aos mais devotos, aqueles cujos votos exigiram grande sacrifício e esses podem se tornar membros da corte, sentando-se a mesa com grandes heróis e homens santos, banqueteando-se, bebendo e fornicando por toda a eternidade, ou seja lá quais recompensas os deuses lhe ofereçam.
O Império tem centenas de deuses. Sendo alguns mais importantes do que os outros, mas eles não constituem um panteão e estão longe de ser uma grande família feliz. Tendo suas próprias intrigas, alianças e desavenças. São esses conflitos que os levam a arregimentar almas que possam fazer crescer seus exércitos e sua influência entre os Domínios, até que chegue o dia da última batalha. O Faradeon. A era do fogo. Quando os deuses irão se enfrentar e se destruir, até que exista apenas um entre tantos, tanto nos Domínios como nos calabouços infernais. Ninguém sabe quem será esse Deus único, e cada devoto espera estar do lado vencedor, mas seja ele quem for, terá poder absoluto sobre o destino de tudo.
Falamos muito sobre a religião politeísta do Império, mas existem pelo menos três religiões que precisam ser contextualizadas também. A primeira dela e a mais óbvia são os áugures, ou os videntes, a religião trazida do oeste quando os fundadores de Karis atravessaram o Rio Lot. Ao contrário da população original de Karis, os homens do oeste não tinham deuses, sendo fiéis unicamente aos seus ancestrais mortos que podiam se manifestar inclusive no mundo físico, mas através dos anos e da convivência com os outros povos, houve um sincretismo religioso, e os áugures passaram a reconhecer a existência dos deuses, embora continuem considerando os ancestrais mortos como a verdadeira ponte entre o mundo físico e o espiritual. Neste caso eles fazem seus votos normalmente, porém possuem seus ancestrais para intervir em sua defesa junto aos deuses.
Já os dhäeni, não fazem votos. São conectados a Grande Canção do Mundo desde o momento de seu nascimento e não faz sentido fazer juramento aos deuses, uma vez que estão presos no ciclo de morte e reencarnação daquele mundo, alimentando a Canção Que Criou Tudo.
Por último, é importante falar sobre o Orum, Deus Sol de Omöe. Seus devotos o consideram como único e verdadeiro Deus, acima de todas as coisas, sendo as sombras sua simples ausência. No entendimento dos cidadãos do Império, Orum seria apenas mais um deus dos Domínios, mas para os habitantes de Omöe a mera ideia de que exista outros deuses é digna de piada, uma vez que Orum está no céu todos os dias, enquanto os deuses do Império se escondem em seus Domínios.
É possível dizer que o sincretismo religioso do Império tem como raiz suas origens bélicas. Tendo sido formado pela conquista de diversos povos com tradições tão diferentes, a ideia de um grande panteão com tantos deuses que não se pode nomear se tornou útil. A cada novo povo conquistado, era um novo deus que assumia seus domínios. O respeito a religião e tradições alheia tornava a conquista algo mais aceitável aos povos sobre o seu domínio. Ao mesmo tempo a ideia de que deuses com mais seguidores eram mais influentes parecia lógica e trazia certo controle sobre quais cultos deveriam ou não prosperar. Por fim, os Allarini, homens do oeste se colocavam a parte daqueles conflitos, ao dizer que deviam respeito aos deuses, mas que era melhor não incomodá-los. Assim, mantiveram suas tradições de culto aos antepassados, ao mesmo tempo em que envaideciam os povos conquistados com a grande importância dos seus próprios deuses. Intencional ou não, certamente isso é parte importante do sucesso do Império de Karis.
Votos são realmente algo importante no Império e você pode ver isso em O Gigante da Guerra, tanto nos votos de Lenna, como nos novos votos feitos por Ward. Quanto em Aquilo Que Nós Matamos, onde Seryna vê seu mundo virar de cabeça para baixo no dia dos seus votos. Na Gazeta Ordinária, a questão dos votos surgiu em alguns contos, como A última Ponte e O Mar da Agonia. Você pode receber contos como esse gratuitamente, basta assinar a newsletter.
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