Ano novo, novas páginas, novas ideias. Todo ano é a mesma coisa, embora diferente. Listar os projetos, priorizar o que está atrasado, apertar as metas para não perder o pique e evitar a palavra regime, mesmo soltando o cinto para me sentar e escrever.
Para dar conta das resoluções de fim de ano, voltei a um antigo hábito e remontei meu Bullet Journal, que em inglês significa agenda feita a mão para você se fingir de produtivo. Montei as tabelas, as metas inalcançáveis de palavras diárias, a lista de tudo o que quero, posso e devo fazer e um cronograma para a entrega dos projetos, sendo o principal deles o segundo volume do Chamas do Império (sim, minha gente, esse ano vai). Tudo organizado, começamos da primeira semana, ainda em passos de ressaca, mas na direção correta.
Preencher as páginas, pintando quadradinhos para ver o meu progresso, se tornou uma nova obsessão e, mesmo sabendo que todo controle é uma ilusão, a sensação de ter algo nas mãos que representa todas as ideias que passam pela minha cabeça me ajuda e de alguma forma acalma a minha ansiedade.
Eu tomo notas de forma compulsiva. Sempre fui assim. Escrevo a mão desde que o mundo é mundo. Tenho centenas de cadernos com desenhos e ideias, que remontam a idade da pedra lascada, alguns já tão apagados que é impossível ler qualquer coisa. Só me faltam os primeiros diários que em um surto adolescente eu joguei dentro de um poço abandonado. No lar de antigos demônios sacrifiquei minhas memórias e talvez por isso eu não me lembre muito bem das coisas.
Mesmo sem aquelas primeiras páginas, eu acumulei uma pilha crescente de ossos que vão ganhando poeira no cemitério das gavetas. Rascunhos, mapas, viagens, desabafos, planos, títulos, sonhos, romances, ódios. Se 1% do que tem nesses cadernos servir para algo, já formaria minha própria biblioteca de Alexandria.
Agora mesmo tenho uns quatro, só ao alcance dos olhos e já não posso imaginar quais são os seus segredos. O último deles é uma pequena caderneta azul, onde nasceram algumas das minhas últimas histórias. Nele Seryna fez sua vigília sob a árvore de Jamá na sua cerimônia de maioridade. Ali, João chegou a casa faminta da velha que vivia na floresta.
Foram nessas páginas que Kåre se ergueu do túmulo onde foi enterrado vivo, uma história que nunca foi contada, mas que foi a fundação da sua aventura em Córdoba, no conto “Eu sou Hella!”. Também nessa caderneta se encerram o destino de diversos personagens de Chamas do Império, depois de tudo o que aconteceu na noite do Teatro da Ira, tudo amontoado e cheio de versões, formando meu próprio multiverso da loucura, cada um com uma morte diferente.
Tenho dificuldade em manter o foco. Estou sempre pulando de uma história para outra. O resultado é um labirinto de ideias repetidas e fragmentadas onde é facílimo se perder.
Está tudo lá. Quase completamente sem sentido, embalados e prontos para o cemitério, com tudo aquilo que nunca saiu do papel. Mais projetos do que a tendinite me permite listar. Com olhares pidões para que as traga de volta a vida, que eu lhes dê uma chance de existir para além da minha vontade.
Sempre penso nas histórias que morrem quando alguém se vai, mas eu as estou perdendo em vida. Fabriquei meus próprios fantasmas e preciso vê-los desvanecer diante dos meus olhos, sem deixar de me sentir culpado por isso.
Um dos primeiros conselhos que todo e qualquer escritor dá a um iniciante é: tenha sempre um caderno por perto e anote sempre as suas ideias, mas o conselho que eu gostaria de ouvir é o que fazer com elas depois que se acomodam caoticamente nas páginas.
Não com aquelas estonteantes que nos arrancam do momento presente e nos fazem abandonar todos os projetos para começar algo novo, nem aquelas que estão ali apenas como um enxerto de trabalhos em andamento, mais como um exercício textual do que um registro propriamente dito, mas de todas as outras. Aqueles pequenos devaneios que temos no meio da noite e que nos fazem acender a luz para anotar e não esquecer, mas que ao ganharem o papel são abandonados de toda forma.
Tomar essas notas em cadernos que jamais serão consultados, talvez não seja mais que uma tentativa de expiar a própria culpa pelas coisas que nós não fazemos, como se ao rascunhar três parágrafos de uma novela, tivéssemos escrito a novela em si e não precisássemos mais pensar sobre ela. Alegremente fechamos o caderno e damos nossa responsabilidade por concluída. A ideia está lá, guardada. Como se as notas fossem sementes que na escuridão da gaveta germinassem e crescessem sozinhas. Somos grandes filhos da puta. Pais ausentes, abandonando crianças pelo mundo sem o acompanhamento de um leitor responsável.
Gostaria de ter tempo e disposição para esvaziar todos os meus cadernos. Página por página, ideia por ideia, consumindo-as para que não ficassem perdidas. Fico imaginando que joias estão perdidas entre aquelas notas, mas também penso nas ideias ruins, nos caminhos que consegui ou não evitar. Todos os erros aos quais sucumbi.
Seria interessante rever os projetos antigos, revisitar personagens esquecidos, passear pelas paisagens imaginadas ou pelos conceitos estranhos de como eu via o mundo, em uma espécie de arqueologia de mim mesmo, mas sei que não vou fazer isso. Assim como sei que não vou reler os livros que mais amei na minha vida. O tempo é curto e seguimos, ignorando nosso próprio passado. Como cães perseguindo a própria lua; a língua de fora, as pernas esticadas, os olhos ardendo lágrimas e uma alegria incontida em sentir o vento no rosto. Estamos perdidos nesse caminho, arrastados pelo fluxo de pensamentos, mesmo que pudéssemos nos voltar para farejar nossos passos, não nos reconheceríamos mais em nossas pegadas.
Os cadernos vão continuar lá, lentamente se esfarelando, enquanto envelhecemos lado a lado. Antigos amantes que já não se tocam nem mesmo em palavras. Coisa triste são os cadernos de ideias. Amores efêmeros, que logo esquecemos.
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