Abri a porta de casa e as cachorras correram latindo para o invasor. Viver em uma casa na cidade tem dessas coisas. Acontece com todo mundo e você espera que em algum momento aconteça com você também. O portão da rua estava escancarado e eu olhei para os lados procurando por qualquer coisa que pudesse usar como arma. Não porquê estivesse com a maior vontade do mundo de sair na porrada com um bandido, mas porquê queria que ele tivesse pelo menos um pouco de receio e me deixasse para trás com pelo menos um dos rins. As cadelas, por outro lado, esbanjavam valentia e eu fui logo atrás, temendo que com medo, ele fizesse mal a uma das minhas bichinhas.
– Ai moço! Desculpa! – A voz aguda denunciava o medo.
Diante de mim, uma mulher arregalava os olhos, sem saber o que dizer direito. O cabelo preso, camisa da companhia de água, bolsos e mãos cheias de jabuticabas, ainda meio verdes, recém-furtadas do pé. As cachorras se ocuparam em cerca-la, meio irritadas, meio curiosas, talvez um pouco interessadas em ganhar umas frutinhas.
– Eu… vim roubar jabuticaba! – Ela foi logo confessando o delito, tentando engolir as frutas que já enfiara na boca.
Desatei a rir. As cachorras relaxaram e aproveitaram o descuido para fugir pelo portão aberto. Entre gargalhadas minhas, desculpas dela, lutamos para trazer às duas de volta. Portão encostado, todos seguros, ela não sabia o que fazer com as frutinhas na mão, e ficava tirando folhas e galhinhos da sua colheita apressada. O rosto tão vermelho que parecia estar no meio de uma crise alérgica.
– Claudia! As cachorras estavam soltas! – Ela gritou para uma cúmplice no meio da rua que nem se dignou a aparecer em seu socorro. – Moço, desculpa. Eu adoro jabuticaba!
– Você quer pegar mais? – Foi a primeira coisa que eu consegui dizer.
– Mais? – Ou ela não entendeu, ou não acreditou.
– Isso! Pega mais! O pé esta cheio e eu não dou conta de comer tudo. Quer que eu pegue um saquinho para você levar?
Senti sua dúvida. Não era a reação que ela estava esperando. Ameacei entrar para pegar o saquinho, mas ela se apressou em dizer que não. Que já estava bom aquele punhado. Correu a me entregar a conta de água, tentando provar que não era nenhuma bandida. Naquela altura eu já tinha relaxado.
Quando eu era moleque, vivia em uma chácara na fronteira de São Paulo e Osasco, uma região completamente metropolitana, mas em um bairro de casarões suntuosos e grandes terrenos ainda baldios, que me proporcionaram uma espécie de infância no interior.
A maior parte das frutas que eu comia vinham direto do pé. Banana, amora, jabuticaba, carambola, abacate, manga, pitanga, goiaba, limão, fruta-do-conde, cereja-do-mato, jambo, macadâmia, mexerica, ameixa, tudo ficava a disposição, bastava chegar a época certa e lá estava eu, trepado nos galhos das árvores, em busca do fruto mais bonito, que acontecia de ser também o que estava no ponto mais difícil.
Tenho certeza de que aquele cão do inferno estava gargalhando naquele momento. Se pudesse falar, ele diria que correr era bom para abrir o apetite, mas eu não tinha outra opção.
Os dias eram fartos e ainda sobrava o suficiente para fazer suco e geleia com o que eu levava de volta para casa, mas mesmo com os dedos manchados de amoras e os bolsos cheios de jabuticaba, eu nunca deixava de cobiçar as frutas do pomar do vizinho. Suas árvores tinham tantas frutas quanto as nossas e a mesma variedade ou um pouco menos, mas havia algo em seu pomar que nós não tínhamos e que me fazia subir no muro entre às duas propriedades e esperar, pacientemente, como um caçador em busca da sua presa, salivando ansiosamente pelo que parecia estar longe das minhas mãos.
O que o vizinho tinha, e fazia as suas frutas muito mais gostosas do que as nossas, era um dobermann feroz, pronto a me dilacerar vivo se me pegasse do lado errado do muro.
Eu não tinha real noção do perigo que estava correndo. Na minha cabeça, tudo era uma brincadeira em que eu ganhava cada partida. Só muito mais tarde eu me dei conta de que bastava perder aquele jogo uma vez para minha mãe receber uma notícia trágica. Ao invés de flores no meu caixãozinho infantil, as pessoas colocariam limões.
Uma vez o cachorro me avistou diante do pé de fruta. As orelhas pontiagudas e curiosas foram se abaixando assim que perceberam a minha presença. Durante uns instantes, nos encaramos como dois inimigos jurados, prestes a duelar diante do por do sol. Não tenho certeza da minha idade, algo entre dez e doze anos, uma certeza nas minhas próprias capacidades. O dobermann se apoiou nas patas dianteiras, levantando as ancas e eu sabia estar prestes a pagar por todas às vezes em que eu o deixei do outro lado da cerca, latindo, com a cara de tacho. Subitamente ciente do meu fim, desarmado e sozinho, fiz aquilo que você nunca deve fazer em situações como essa.
Eu corri.
Corri como nunca tinha corrido em toda a minha vida e como certamente jamais correrei mais. A velocidade era tanta que eu sentia o vento me fazendo lacrimejar, como quando eu descia o ladeirão de bicicleta sem freio. O coração batendo como um motor V8, mas quando olhei para trás, o dobermann tinha se empolgado.
Tenho certeza de que aquele cão do inferno estava gargalhando naquele momento. Se pudesse falar, ele diria que correr era bom para abrir o apetite, mas eu não tinha outra opção. Não dava para simplesmente parar e perguntar se podíamos ser amigos. Eu corri com toda a força das minhas pernas e quando vi que minhas pernas não seriam o suficiente, comecei a pular obstáculos, vasos, plantas, plataformas de madeira, qualquer coisa que pudesse ficar entre mim e a morte certa. O medo era tanto que eu teria vencido qualquer olimpíada de obstáculos com ampla vantagem. Quando cheguei ao pé de jambo, me joguei em um dos seus galhos mais baixos e me puxei para cima, uma perna depois da outra e fui escalando, com a agilidade de um macaco. Lá de cima pareceu que eu podia respirar pela primeira vez. Enquanto abaixo de mim, minha nêmeses girava em círculos, frustrado.
Todo meu corpo tremia e eu tive dificuldade para me manter empoleirado, mas estava seguro. Meu pulmão lutava para recuperar o fôlego e eu sentia a roupa ensopada de suor, sobretudo minha meia. Quando olhei para ela, achei estranho, pois um dos pares era vermelho e o outro era branco. Só depois de um instante reparei que o vermelho era sangue que estava escorrendo do meu joelho, onde um corte profundo deixava a mostra minha rótula.
Acabei ficando naquela árvore um tempo até o cachorro se cansar e ir embora. No meio do caminho encontrei uma torneira onde lavei a ferida e tomei água. Fiz um emplasto de folha de eucalipto mastigada e joguei a meia manchada fora. Passei aquele verão todo de calças compridas, para minha mãe não ver o que eu aprontei. Eu não queria levar pontos. Não queria responder perguntas e com toda certeza não queria levar a surra que eu merecia por conta daquela história toda. O ferimento demorou a fechar e eu tenho a cicatriz até hoje, como uma das minhas medalhas de honra que exibi nos intervalos do colégio com todo orgulho.
Não sei se minha mãe um dia soube dessa história, se não soube e estiver lendo agora, desculpe mãe! Foi assim que eu perdi um pé de meia. Era questão de sobrevivência. Preferia enfrentar o cachorro tudo de novo do que minha mãe quando ficava brava e eu dava muitos motivos para a minha mãe ficar brava. Felizmente ela só sabe de uns 10% deles até hoje, ou eu já estaria naquele caixãozinho com limões ao invés de flores.
A mulher da leitura da água agradeceu as jabuticabas. Garanti que ela podia ficar a vontade quando visse o pé cheio e ela foi embora, sem aceitar o saquinho para pegar mais um punhado. Nas últimas semanas o pé ficou carregado e as frutas estão muito maduras, para a alegria dos pássaros. Não sei se a mulher vai encontrar jabuticabas quanto voltar no mês que vem, acho que não. Acho que no fim, eu também acabei com a alegria dela, quando disse que ela podia ficara a vontade. Fruta roubada é sempre mais gostosa.
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