“Pelo menos no Brasil ainda tem osso.” A frase flutuou na minha tela por um piscar de olhos, me desafiando a aceitá-la como real. “Na Venezuela, já estão comendo os cachorros”.
Uma frase. Uma certeza de que os argumentos foram vencidos. Nenhum sentimento de empatia. As pessoas não se importam mais com a dor do outro. Comam ossos ou carne de cachorro, passem fome ou morram sufocados lentamente na cama do hospital por quê “óbito também é alta”. O ódio é contagioso e se espalha pela indiferença. O desprezo também é pandêmico.
Todo dia eu me pergunto de onde saiu essa gente, que por tantos anos se escondeu tão bem. Por que fresta da realidade eles se arrastaram para, não só se vangloriar diante de nós, mas tomar tudo ao nosso redor, como cruzados do inferno.
Nega-se a fome, apontando a solução os pés de manga e dando ao estômago oco outro nome. “No Brasil passa-se mal, mas não se passa fome”, o diabo diz entre uma garfada e outra, a boca suja de gordura e leite-condensado, enquanto nas escolas as crianças desmaiam por falta de comida, mas estamos indo bem.
A queda do desemprego é só outra bravata, enquanto um pai e uma mãe, um filho ou neto, pedala doze horas, para entregar seu hambúrguer chique, o dia inteiro sem um prato de comida, sem uma garrafa d’água ou um obrigado. Expulso do restaurante classe média, quando pede para usar o banheiro. O estomago roncando com o cheiro da pizza sob os ombros, enquanto eles insistem que o país está decolando e escondem o próprio dinheiro no exterior, só por garantia.
O jornal pode mentir, a política só sabe mentir, mas a geladeira vazia diz a verdade. O carrinho de supermercado segue leve, quando segue e o fogão são só mais quatro bocas que ninguém mais pode alimentar.
Outro dia vi um homem preparando a própria cama no carro. Já o vi várias vezes desde então. O veículo é seu ganha-pão, seu teto, seu sustento. É o lugar onde ele descansa a cabeça e ainda se permite sonhar. Trocamos um olhar, por um segundo ou menos, ambos constrangidos pela privacidade violada. Um pedido silencioso de desculpas e culpas, pelo espaço invadido, pela noite não dormida, pela merda que a gente está sem saber como desatolar.
Depois de uma noite de chuva, enquanto passeio com as cadelas sob a sombra fresca das árvores, encontro pássaros mortos pelo chão. Filhotes que mal abriram os olhos, ainda nus sem as penas do mundo. São tantos, já não consigo contar. Apodrecem nas calçadas, misturados com os ratos e os restos. Ignorados por serem o preço a pagar. Quem vê as árvores não se lembra de pássaros mortos.
Uma garagem se abriu, assustando minhas cachorras. Segurando a porta de correr acima da cabeça, o motoqueiro de capacete me olhou surpreso. Pedi desculpas. Desejei bom dia. Nos olhos visíveis pela viseira aberta, o mesmo olhar constrangido, o mesmo pedido de desculpas, a mesma cena que se repetia e de novo, como se a miséria fosse uma falha pessoal. Sentia vergonha que eu visse sua pobreza. Que eu reparasse que na garagem, ao lado da moto, ficava também a sua cama. Outra memória. Outro fantasma.
Às vezes eu queria poder desligar. Queria que essas imagens sumissem da minha mente, que as palavras não me atingissem tanto. Gostaria de esquecer a ansiedade das pessoas revirando os restos do açougue, na esperança de ter algo no prato essa noite. Apagar a vista do motorista de aplicativo que agora dorme no carro asseado, a mãe e filha juntando latinhas e trocados para pagar o aluguel que vence hoje, queria esquecer a vergonha do motoqueiro que me pede um copo d’água e do cansaço no rosto do rapaz magrelo que montou sua cama dentro de uma garagem alugada, mas estão todos lá, se acumulando.
Escrever ajuda. Tem um pouco de exorcismo e um pouco de masoquismo. Eu revejo as cenas tentando prendê-las onde não podem mais me alcançar. Liberto as memórias para se tornarem histórias e então posso fingir que não foi comigo. Que eu nunca vi nada disso! Que estou simplesmente mentindo, mas eu sei ser verdade.
Estamos mortos. Em algum momento o mundo acabou e nós assombramos o seu esqueleto. Somos as larvas que restaram na carcaça da história e os ossos estão a mostra, alimentando a miséria de quem ainda não desistiu.
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