Todo filme de terror
On September 27, 2021 | 0 Comments

Primeiro foi uma casa nova, vizinhança, clima, rotina. Tão diversa que poderia ser outro país ou outro universo em que por acidente ainda se falasse português. Enredo de 5 entre filmes de terror, a casa do vale, desprovida de sanidade, aguardava emaranhando suas raízes sob à terra negra. Dos outros cinco, ao menos dois eram motivados por novos vizinhos, o que pode significar que talvez sejamos antagonistas nesse enredo.

Minha casa assombrada, com raízes que bebiam do pântano onde ela nasceu, cresceu em seu próprio silêncio. A roseira ganhou flores. A jabuticabeira formou grandes bolotas verdes que em breve explodiriam e a casa ressuscitou, quando ganhou um ninho de pássaro onde ouço um sabiá alimentar um insatisfeito filhote. Nenhum morto se ergueu, nenhum demônio se incomodou, os desejos e sonhos permaneceram felizes me convencendo de que um dia seria eu assombrando o próximo inquilino para expulsá-lo da minha casa.

Foram as cachorras que primeiro repararam termos vizinhos na casa ao lado. A antiga moradora e seu filho tinham se mudado deixando a casa vazia por alguns meses e embora no início eu tivesse estranhado de início o silêncio que engoliu suas arengas com seu filho, acabei me acostumando com o vazio. O vazio me permitia pensar, mas agora ele estava prestes a ser quebrado.

Nos dias que se seguiram àquele primeiro sinal, a mudança finalmente aconteceu. MPB tocava baixinho, com vozes conhecidas e desconhecidas. Moveis eram montados, decisões estavam sendo tomadas e a ideia de que meu pequeno retiro de silêncio estava prestes a ser invadido foi lentamente ganhando corpo. Ao meio do dia, nos encontramos no portão.

Não havia absolutamente nada de errado no casal que se mudou para a casa ao lado. A frente da casa ganhou pintura e novas plantas. Elogiaram minha jabuticabeira e tentaram amizade com minhas cachorras, sem muito sucesso. Expliquei os dias de coleta de lixo e sobre a pressão da água da rua. Quando orgulhosamente me contaram sobre seus gatos, temi pela segurança do meu ninho, mas confiei que as cachorras seriam o suficiente.

Já naquela primeira noite nós fomos atacados. O barulho das patas raspando o chão e coisas sendo derrubadas me acordou antes do primeiro latido, mas eu saí no quintal a tempo de ver minhas cachorras encurralando um gato imenso, de pelagem café e rosto preto, orelhas baixadas e dentes afiados. Um animal fabuloso, descendente direto do gato preto de Poe, que não tenho vergonha em dizer que me deu certo medo, tanto por mim quanto com o que poderia fazer com às duas cachorras que valentemente o deixavam sem saída.

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Photo by PublicDomainPictures on Pixabay

Separá-los foi um desafio. Atrair as cachorras para dentro para deixa-lo ir parecia ser a solução mais simples, mas elas simplesmente se recusavam, deixando o animal a cada instante mais agressivo. Quando finalmente consegui prendê-las, por medo ou simples deboche, o gato subiu no parapeito da janela e as encarou do lado de dentro. Fui forçado a empurrá-lo para fora. A imensa massa de gato estava longe de ser só pelo. Era mais gordura do que músculo, mas provava-se aferrado a vontade de permanecer.

Dei a volta e insisti em pegá-lo. Só então me dei conta do quanto cheirava mal. A ideia de um gato que pudesse feder nunca havia me ocorrido, mas ali estava ele, com o cheiro característico de quem se banqueteou entre coisas apodrecidas. O cheiro e sua resistência me fizeram pensar que talvez estivesse ferido de alguma forma. Um gato coberto de pústulas, tumores e feridas abertas, mais King do que Poe, se eu estivesse certo.

Havia também a ideia de que o que eu entendi como gordura e músculo fosse a barriga prenha de uma mãe prestes a ter uma ninhada. Neste caso o cheiro dizia haver algo errado? O que fazer? Não houve tempo. Animada em ver o gato nos meus braços, quieto, porém desconfiado, uma das cadelas tentou abocanhá-lo sem sucesso. O gato escapou dos meus braços e correu, perseguido por ela, que não teve a menor oportunidade diante da agilidade felina. Insistente, a cachorra chegou ao assunte de pular o muro da casa para alcançar sua presa, que já naquele momento havia voltado para o quintal do vizinho, onde encontrou seu território.

Já naquela primeira noite nós fomos atacados. O barulho das patas raspando o chão e coisas sendo derrubadas me acordou antes do primeiro latido, mas eu saí no quintal a tempo de ver…

Dos dez filmes de terror que falávamos anteriormente, dois eram motivados por algum animal maligno. Então na noite seguinte eu esperei que o gato voltasse para promover sua vingança. A retribuição ainda não veio.

Dia desses o vizinho me comunicou que estava indo buscar o terceiro gato. Agora que tinha mais espaço, faria a família crescer. Um morceguinho todo preto, com olhos ainda embaçados e fedor de leite. Os gatos mais velhos odiaram a ideia, eu apenas me divertia em ouvi-lo falando com os gatos usando voz de criança, subitamente esquecido que eu fazia o mesmo por aqui também.

Depois de uma semana, é dado como certo de que não estou mesmo em um filme de terror. O ninho de pássaro continua resistindo às chuvas graças ao papelão que usei para lhe dar cobertura, a jabuticabeira se enche de frutos. Existe um tratado de paz na fronteira entre cães e gatos. E se a música parar um pouco. Se Maria Gadu e Ney Matogrosso me devolverem o silêncio, mesmo que por pouco tempo, estou quase certo de que vou conseguir guardar a faca de cozinha que está sobre a mesa.


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