Dia desses havia uma bagunça de folhas espalhadas no meu quintal. Não a bagunça costumeira, das folhas da minha jabuticabeira, mas de folhas estranhas e murchas, como se tivessem sido arrastadas até ali pela chuva. A confusão estava toda ao lado de um pequeno canteiro de flores e eu inocentemente coloquei a culpa em algum gato que estivesse passeando pelo meu jardim e escavando à terra para esconder as necessidades. Na pressa, fiz uma anotação mental e sai correndo para o trabalho. Naquela semana estava trabalhando fora, o que tem sido cada vez mais raro, e como a grande maioria dos brasileiros, chegava em casa apenas para tomar um banho e dormir.
A minha casa amarela, tem uma jabuticabeira na frente, uma varanda com rede, uma churrasqueira portátil e portas azuis, como se tivesse sido magicamente transportada do interior para a cidade. Na rua tranquila, ouço o som dos pássaros e um galo que canta em algum lugar de madrugada, como se estivesse brotando de um sonho. É fácil me esquecer que estou em São Paulo, tem algo de fantástico na forma como aquele cantinho se escondia entre os prédios, e estou feliz com meu refúgio urbano. Nos últimos anos saí tão pouco que ainda tenho dificuldade de encontrar o caminho para o bairro quando estou indo para longe e entrego a tarefa para o motorista do aplicativo, uber, 99taxi ou Caronte que com a crise agora não só vai como também volta.
Não saber ao certo o caminho para o refúgio faz parte de sua magia. A outra parte dela é a fraqueza que me dá sair daqui para encontrar o mundo real lá fora, tarefa que tenho feito cada vez menos e quase sempre a trabalho. Foi assim essa semana. Cheia de trabalho, coberta de fraquezas, ignorando as folhas que se acumulavam no quintal e as broncas cada dia mais furiosas da minha cadela, sempre que voltava para casa. Não era esse o combinado. Ela tinha toda razão.
Durante uns dias minha casa se tornou o concreto onde eu atendia as urgências do cliente e o meu refúgio era só um dormitório que eu só enxergava à luz mortiça da manhã enquanto passeava as cachorras antes de embarcar naquela viagem entre o Estige e o Aqueronte. E justamente em um desses passeios eu encontrei um vendedor de vassouras, de quem eu comprei uma vassoura de palha, tão autêntica que só faltou vir com sua própria bruxa.
No fim do passeio, já com tudo pronto para a partida, me coloquei a testar a aquisição, juntando com zelo as folhas que eu ignorara naqueles longos dias.
Cuidar do quintal, em uma casa amarela, escondida da realidade, me fez lembrar de quando era garoto e minha mãe me obrigava a varrer o quintal da minha vó. A tarefa parecia sem fim e quando terminava minha mãe nunca estava satisfeita, embora minha vó parecesse jamais se importar. Era algo que odiava antes, mas fazia com prazer agora.
É estranho como as coisas se amarram. É estranho escrever sobre isso. Da minha casa amarela, passando pela casa improvisada onde agora trabalhava e da casa da minha vó até as folhas caídas pelo chão. A sujeira se juntando no meio do caminho, sem qualquer justificativa que eu pudesse imaginar. Folhas estranhas, compridas e murchas, penduradas nos galhos da roseira que andava pedindo para ser aparada. Foi limpando essa bagunça e examinando a roseira que encontrei a solução daquele mistério: entre os espinhos, em um espaço coberto e firmemente ancorado, um ninho foi construído.
Olhei no relógio e vi que estava atrasado para meu encontro com o barqueiro, guardei a vassoura de bruxa, tirei uma foto rápida do ninho focando-o pela parte de cima que estava longe da minha visão e fui embora, bastante feliz ao reconhecer meu novo inquilino.
Não saber ao certo o caminho para o refúgio faz parte de sua magia. A outra parte dela é a fraqueza que me dá sair daqui para encontrar o mundo real lá fora.”
A presença do ninho talvez explicasse a cantoria que agora eu ouvia pela manhã. Estava acostumado com os pássaros, mas um em particular parecia cantar mais alto do que os outros diante da minha janela. Certamente o novo morador.
Passei o dia preocupado com a segurança do ninho. Alto demais para as minhas cachorras, mas baixo para o ataque de um gatinho. Cogitei a possibilidade de movê-lo de onde estava. No fim me acalmei. Nos dias seguintes, antes de sair eu verificava o ninho. Estava sempre vazio, mas era vigiado de perto por um sabiá de peito laranja.
Depois de algumas semanas de seca e alguns dias de calor intenso, uma noite começou a chover. Minhas cachorras se refugiaram debaixo das cobertas, a casa zumbia e deixava-se engolir pelo barulho da cascata que se formava caindo do telhado. Eu pulei da cama preocupado com a fragilidade do ninho sob a proteção das rosas e mesmo encontrando-o seguro entre os espinhos, improvisei uma pequena cobertura de papelão, tentando encontrar para ele um pouco mais de conforto.
Na manhã seguinte o sabiá ainda cantava na minha janela e, vestindo o uniforme preto do trabalho, eu sorria durante a travessia após entregar a Caronte o seu óbolo.
Hoje o trabalho terminou. Voltei para meu refúgio, primeiro em corpo, então também em sombra. Enquanto a alma voltava a se acomodar no seu receptáculo de carne, eu me acomodei na rede, sentindo o vento que continua úmido graças a chuva e soprava as folhas do quintal. Com uma das minhas cachorras deitada em minha barriga, e um livro entre os dedos, eu adormeci por uns minutos. Em algum lugar acima da minha cabeça, entre as árvores, um sabiá cantava.
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