Todo dia pela manhã passeio meus demônios.
Gula e Ira me arrastam pela calçada, fazendo com que as pessoas saiam do caminho. Gula farejando cada pedaço mal cheiroso de lixo que encontra, Ira rosnando para tudo o que passa a sua frente. Os transeuntes se afastam, temendo o caos. Atravessam ruas, entram em lojas, abraçam seus filhos ou fazem o caminho de volta. Gula olha para todos com uma expressão faminta, enquanto Ira julga cada um dos seus movimentos. Eu sigo no controle de danos, pedidos de desculpas e tentativas de evitar que a violência se alastre demais.
Seria mais fácil se eu conseguisse prever a forma com que vão reagir. Ira tenta controlar o mundo a sua volta, não gosta de bicicletas na calçada, nem de gente falando alto. Julga mal pessoas com chapéu, torce o nariz para quem arrasta o chinelo, enlouquece com quem fura o farol ou atravessa fora da faixa. Gula quer tudo para si. A comida que encontra pelo chão, a atenção de quem passa na rua, os elogios deixados ao vento. Ira e eu também lhe pertencemos e não devemos socializar com mais ninguém.
Todo dia pela manhã passeio meus demônios.
O ritual leva quarenta minutos e termina dentro de casa, com os demônios se banqueteando enquanto eu recolho restos e respiro aliviado. Então eles se apagam. Se aninham em seu conforto, fecham os olhos e parece realmente que foi tudo uma estranha invenção da minha cabeça, até que a noite cai e chama os demônios para fora mais uma vez.
– Você já pensou que talvez esteja projetando algo no comportamento delas? – A voz empoleirada em meu ombro diz, enquanto eu escrevo esse texto. – Você não devia falar aos outros sobre mim.
Ela acrescenta irritada ao ler essas palavras, mas a verdade é que talvez tenha razão. São meus demônios, no fim das contas. Minha própria raiva, minha própria ansiedade. O desejo que tenho de possuir e queimar tudo ao meu redor enquanto uivo para a lua.
Sou eu rosnando para o motoqueiro que quase me atropela no meio da rua, sou eu me arrastando para qualquer aceno ou palavra gentil.
Eu esvaziando os potes de ração seca e sem sabor, com toda a fúria de quem vai encontrar respostas por baixo.
Eu mijando debochadamente diante de bancos, lojas de luxo e restaurante finos, apenas para marcar o meu território.
O desejo que tenho de possuir e queimar tudo ao meu redor enquanto uivo para a lua.
Sou eu, são meus demônios, são minhas próprias loucuras, minha gula por tudo o que não posso ter, minha ira por tudo o que eu não posso mudar. Presas em correntes que se estendem, roídas e gastas, na tentativa de escapar do inferno que eu mesmo criei em minha cabeça. A voz sentada em meu ombro tem razão, ela tem asas mas não é um anjo.
– Você devia voltar para terapia. – Debocha acendendo um charuto. – Ou pelo menos pedir ao psiquiatra para aumentar a dose.
– Foda-se, seu filho da puta. – É a minha única resposta. Ele lê as palavras no monitor e ri.
Todo dia pela manhã passeio os meus demônios e enquanto elas descansam, com a barriga cheia de farelos, eu me sento para encarar verdades sinceras demais para serem ditas em voz alta, então as escrevo e me admiro como elas passam a fazer tanto sentido.
As vezes não quero participar disso. Vejo a sombra do quarto ser substituída pela manhã cinzenta e sinto um peso sobre o peito, enquanto a voz me diz para tirar a amanhã de folga, que não preciso fazer nada hoje. Ela me lembra do sonho que eu estava tendo e de como era bom sobrevoar a cidade com o vento no rosto, ou fala das pessoas que se foram, deixam saudades, e não voltarão mais.
A realidade só se confirma quando a ficção lhe dá substância e forma.
Chego a concordar. Me enrolo nos lençóis, fecho com força os olhos, querendo me apagar por um instante de paz, mas Ira salta sobre a cama, Gula acorda e rola sobre mim para garantir seu quinhão de afagos. Resta a voz bater suas asas e me deixar ser levado pelas ruas, reprimindo impulsos que não compreendo completamente, como se tivesse algum controle sobre a merda da minha vida.
Estou exausto quando o ritual termina. Vou ficar melhor depois de uma xícara de café. Amanhã farei tudo novamente. Tem sido assim a vida toda. A realidade só se confirma quando a ficção lhe dá substância e forma.
Você está lendo esse texto graças aos apoiadores do Catarse. Além de me ajudar a continuar produzindo, eles recebem algumas recompensas exclusivas. Ficou interessado? Dê uma olhada no link.
There are no products |