Era o último gole do ano. O último filme. A última música. Era a última discussão dos vizinhos. Último choro. Último pedido de desculpas. Última jura de amor. Último arranhar de patinhas. O último pedido para passear. Última luta entre a ansiedade de sair e autocontrole para colocar a coleira. Último chamado do elevador. Último olhar no espelho para recriminar o próprio cabelo. Último encolher de barriga. Último suspiro. Última autoindulgência. Era o último desejo de boa noite para a portaria, que desta vez está vazia. Última luta contra as coleiras para que as cachorras não comam as frutinhas esquisitas que estão caindo da árvore. Último rosnar para o morador de rua que revira o lixo atrás de latas e meu último pedido de desculpas. Era o último pedido por trocados, minhas últimas notas. Um último olhar desacreditado e pedido que Deus me abençoe. Um último riso pela ironia. De último passo em último passo, uma despedida de cada pedaço daquele ano. Último aceno ao dono do bar, último agradecimento ao motorista apressado que para na faixa. Último sorriso desencontrado, misturado aos gritos por pressa, aos tapas no braço, ao choro das crianças, as lágrimas que não consertam nada. Um último desejo de boa sorte antes do carro acelerar, derrubando malas do bagageiro. Era o último grupo de jovens que não tinham idade para estar bebendo. Um último afago nas cachorras. Última oferta de nacos de lanche, última tentativa de dizer que não e último encolher de ombros admitindo a própria derrota. Fogos explodem fora de hora pela última vez, assustando uma das minhas cadelas. Depois de uma longa volta, recolho a merda das duas pela última vez. Vejo as horas, constatando que é tarde demais para voltar para casa. Sento em um banco, me sentindo o último. Uma cadela deitada aos meus pés, a outra procurando espaço no meu colo proclamando a posse pela última vez. Acendo o último cigarro do ano, lembrando uma última vez que eu não fumo, mas mesmo assim dou o último trago. Olho para o céu limpo onde explosões multicoloridas enfeitam o véu negro. Entre elas, como um olho furioso, vejo o meteoro que escreverá a história da humanidade pela última vez.
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