Cuspindo dentes
On December 21, 2020 | 0 Comments

As luzes dos faróis dançavam como um caleidoscópio e eu me esforçava para andar em linha reta, cuspindo dentes na palma da mão, enquanto os carros desviavam de mim. Devia ter dez anos, provavelmente menos, e estava feliz. Nenhum dos dentes sangrentos que eu segurava tinha raiz.

Quando era muito pequeno, vivíamos em uma casa mal assombrada no bairro do Rio do Ouro, em Niterói. Na frente da casa, meu pai tinha um bar que vendia cerveja e cachaça barata, com uma mesa de sinuca, banca do jogo do bicho, seus próprios bêbados de estimação e uma prateleira de doces que eu saqueava durante a noite, fugindo da cama para roubar paçoca e bala das finanças da família.

Entre a esfera das coisas que eu me lembro e das que me contaram, essa fica naquele ponto em que você acha que se lembra. O bar rendia pouco, muitas vezes quase nada. Minha mãe dividia um ovo ao meio para os filhos e comia o arroz puro, mas durante a noite eu fugia da cama, enfrentando os fantasmas da casa para roubar os doces que meu pai mantinha nas prateleiras altas.

Anos mais tarde as coisas já não eram tão difíceis. Já vivíamos em São Paulo e meus avós ajudavam bastante. Quando minha avó faleceu, fomos todos morar com meu avô, o que me rendeu um caminhão de lembranças. Com um pouco de folga das despesas, fui ao dentista pela primeira vez na vida.

Não me lembro do nome dela. Lembro apenas que parecia pequena como uma criança, embora tivesse cara de velha. Seus cabelos eram escuros e escorridos e parecia que estava sempre muito brava. Depois de uma série de exames e radiografias, ela explicou a minha mãe que minha dentição estava muito ruim para a minha idade e que eu teria que extrair dois dentes permanentes. Minha mãe parecia constrangida diante do olhar inquisidor da dentista. O orçamento foi feito, a bronca foi dada, motivada pela culpa ou pela vergonha minha mãe não fez outro orçamento. O dia da extração foi marcado. Eu implorei para a minha mãe que não queria arrancar nenhum dente.

No dia fatídico, a pequena dentista brava me aplicou quatro anestesias, uma depois da outra e não acreditou quando eu disse a ela que nenhuma funcionou. Você já viu nos filmes quando o herói é torturado e o vilão arranca seus dentes com um alicate? Acredite, não é tão fácil assim. A dor me fazia chorar, implorar, me retorcer na cadeira. Ela quebrou meus dentes em não sei quantas partes puxando-os para fora e a cada nova onda de dor dizia que eu estava exagerando. Eu só queria morrer um pouco. Gritava tanto que espantei todos os pacientes que ela tinha naquele dia.

Exausta depois de horas de trabalho, a açougueira enfiou um chumaço de algodão na minha boca e me mandou ir embora. Já era noite. Estava sozinho. Enquanto caminhava pelo chão de terra que levava para casa, senti meu corpo inteiro formigar e adormecer. As anestesias finalmente encontravam o caminho através dos meus nervos tensos. Metade do meu corpo parecia uma coisa inchada, quente e flácida. Sabia que devia estar com dor, mas ao passar a língua no vazio onde antes havia um dente ficava surpreso com a cratera empapada que encontrava no seu lugar. Eu babava sem perceber. Com a boca dormente, comecei a empurrar os dentes de leite da frente. Havia arrancado três deles antes de chegar em casa.

Conheci outros dentistas, alguns simpáticos, outros estranhos. Alguns baratos e outros muito caros. Todos desfaziam o que o dentista anterior havia feito, todos eles faziam um trabalho ainda pior. A única diferença que via entre um dentista e um torturador é que ao dentista eu pagava para sofrer. Tudo no ritual me enchia de agonia. O cheiro do consultório, o barulho da broca, minha língua presa no aparelho de sucção, a anestesia que eu não sabia se iria pegar. A nuvem de água e dentes espirrando em meu rosto. O jato de água gelada. O cheiro de ossos queimados. A aspereza da restauração, como um objeto estranho entre seus dentes por uns dias. A esperança de que fosse a última vez e a decepção sobre começar tudo novamente.

É um sonho recorrente. Sinto os dentes balançando moles dentro da boca e quando vou examiná-los eles se soltam na minha mão. Tento mantê-los no lugar com a língua, mas os dentes escorregam e enchem minha boca. Eu os cuspo, sangrentos, na palma da mão. Então me lembro que é um sonho e acordo assustado. Toco os dentes para garantir que esta tudo bem e eles se soltam na minha mão novamente.

Já tinha passado dos trinta quando eu e minha ex-mulher estávamos fechando as malas para uma viagem de férias e eu quebrei um dente. Uma daquelas restaurações antigas, que tinham me custado tão caro.

O dentista do pronto socorro 24 horas parecia surpreso em me ver ali naquele horário e depois de uma radiografia decretou que eu precisaria fazer um canal. Tentei não pensar muito sobre aquilo. Passava da meia noite. Em seis horas eu estaria voando. A sugestão do dentista, que tinha um forte sotaque estrangeiro, era fazer a parte emergencial do tratamento e deixar a parte estética para quando eu voltasse de viagem. Com a cara inchada, saí do pronto socorro com uma receita de antibióticos para aguentar os quinze dias de viagem e vasculhava as ruas do bairro em busca de uma farmácia que estivesse aberta. Tudo ali me lembrava daquela noite tantos anos atrás, cuspindo dentes na palma da mão enquanto me sentia apodrecer por minhas péssimas escolhas.

Voltei de viagem resolvido a encontrar um dentista que não me fizesse sofrer mais. Entre indicações e escolhas, uma amiga me deu o telefone de sua tia. Do outro lado da linha, quem marcou a hora para o meu suplício era uma mulher chamada Help. Nos anos seguintes, toda vez que eu tinha uma emergência Help arrumava um jeito de me encaixar na agenda da Doutora Ana.

A dentista estalou a língua, em sinal de impaciência, enquanto examinava o estrago na minha boca. Parecia bastante irritada e eu sentia que as notícias não seriam boas. Depois do exame, ela me pediu o CRO do dentista que tinha me liberado para fazer a viagem.

Era claro que eu não tinha nada do tipo. Nem nota fiscal, nem recibo, nem qualquer coisa que provasse que eu tinha estado naquele lugar. A Doutora pareceu ainda mais irritada. E eu me senti culpado por minha negligência.

Durante minha viagem, passei quinze dias com o dente aberto, correndo risco de infecção. A questão era tão séria que poderia ter tido uma parada cardíaca. Segundo a dentista, o açougueiro era um criminoso, mas eu já tinha ouvido aquele discurso antes.

Eu havia perdido outro dente. Era o terceiro.

Fiquei agarrado a cadeira médica, esperando que a dor começasse. Outra coisa que os filmes de ação onde os heróis são torturados nunca dizem é que é mais fácil ser valente antes do primeiro golpe, quando você ainda não conhece de verdade a dor, mas é preciso de um tipo especial de coragem para enfrentar o golpe seguinte, quando você já sabe o que te espera. Tive vontade de chorar, mas fiz o possível para ser corajoso. Doutora Ana tomou todos os cuidados. A dor nunca aconteceu.

Já tem quase dez anos. Foi a última vez que procurei um dentista. A cada seis meses passo para fazer uma limpeza e checkup, quando me esqueço Help me liga e diz que estou atrasado. Eu tinha encontrado uma nova religião, um mundo onde a dor não existia mais, e não o trocaria por promessa alguma daquele mundo.

Uns anos atrás Help me ligou para agendar uma visita. O momento era complicado, faltava tempo, ânimo e dinheiro. Agendei a visita para dali a algumas semanas, garantindo que estava tudo bem. Um vento frio soprou sobre o meu rosto e nuvens escuras cobriram o sol, quando uma deusa vingativa, sentindo-se traída lançou sobre mim sua maldição silenciosa.

Help ria do outro lado da linha enquanto eu a xingava e implorava por uma consulta de emergência. Naquele mesmo dia, uma obturação antiga havia caído. Virou a nossa piada. Help era minha bomba relógio, se eu não marcasse a consulta ela me ligaria e eu estaria condenado. Uma maldição que me manteve na linha por muitos anos.

Semana passada lembrei desta história enquanto passava o fio dental e comecei a rir sozinho. No espelho, examinava o trabalho, me obrigando a sorrir. Nunca gostei do meu sorriso. Os dentes eram longos demais, pontudos demais, falsos demais. Eu ainda sonhava que perdia os dentes. Cuspindo-os um a um, na palma da mão e tentando recoloca-los no lugar, enquanto tentava marcar um horário com a Help e a Doutora Ana. As vezes acordava sabendo que tinha sido um sonho, as vezes eu sonhava que tinha acordado. É parte dos medos que vou levar para toda minha vida.

Anotei mentalmente que precisava visitar a Help em breve. Assim que tivesse dinheiro, me prometi. Não era o ideal, mas era o possível em um ano de merda como esse. Enquanto jantava na frente do computador, correndo para cumprir os prazos do cliente, mastiguei algo duro e estranho. Cuspi na mão o que eu achei que fosse uma pedrinha e não fiquei surpreso quando vi um pedaço de dente. Fechei os olhos, vasculhando a boca com a ponta da língua, desejando estar enganado. Não comigo. Não de novo. Resvalei em um pedaço de porcelana afiada e senti vontade de chorar.

No celular, havia uma mensagem não lida.

Era a Help, perguntando se íamos marcar uma consulta.


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