Ars hermética, a magia cotidiana
On September 14, 2020 | 0 Comments

Pela manhã vi o padeiro de bicicleta. Apoiou o pedal na guia, desceu, abriu a janela da casa sem fazer barulho, colocou o pão pra dentro, me deu bom dia na calçada e seguiu viagem, o cheiro do pão fresco atiçando meu olfato e o das minhas “demônhas”. Não sei porquê aquilo me fez sorrir. Era só um padeiro em seu dia-a-dia, a cesta de pães presa a bicicleta, o cheiro do pão quente, o uniforme limpo da padaria; tudo com zelo. Pensei na pessoa daquela casa que acordaria e encontraria o pão no batente da janela, colocaria a mesa, passaria o café, mandaria uma foto do seu pão com manteiga para desconhecidos e então se arrumaria para o trabalho, completamente alheia ao homem de bicicleta que já estava fazendo entregas antes do sol nascer.

Ars hermética, a magia cotidiana |
Photo by Nathan Dumlao on Unsplash

O pão para aquela pessoa tinha algo de mágico e cotidiano. Brotava na sua janela, sem que ela fizesse o mínimo esforço. Para aquela pessoa o pão poderia ser materializado pela janela vindo de uma dimensão anexa, ou poderia nascer no beiral, como uma espécie de fungo que crescia no meio da noite, em busca dos primeiros raios de sol. Não lhe fazia diferença.

Era provável que, se fosse perguntada, tivesse apenas uma vaga ideia de como fazer o pão. Alguns ingredientes, parte do processo, certos instrumentos, mesmo assim não seria capaz de desvendar por completo a alquimia. Os derradeiros signos, as sutilezas criadas pelo hábito. Passados de um padeiro para o outro, todo aquele vasto conhecimento e esforço que passa desapercebido quando estamos atrasados para o trabalho, para nossa própria alquimia, nossos sacrifícios para Mamon.

Havia algo de fantástico em tudo aquilo. Algo de mágico, como testemunhar deuses esquecidos erguendo o sol pela manhã. A magia existe nos mecanismos invisíveis, nos segredos que não podemos verdadeiramente compreender. Todos os ofícios dos quais não temos mais do que uma vaga ideia são temperados de certo bruxedo: O pão que cresce na mesa do padeiro, a prece silenciosa do coveiro, os escritos herméticos de um advogado, a temperatura correta que faz o metal criar uma liga, a posição dos astros que marcam a estação da chuva, um pintor que conjura a pintura em uma tela em branco, a cadência ritmada das palavras desta crônica. Pequenos passes de mágica, entranhados no nosso cotidiano como algo sem importância. Dissimulações da realidade para dar sentido ao que no fim é puro mistério. Somos todos meio feiticeiros.


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