O fim da humanidade
On May 25, 2020 | 0 Comments

“O que você estava fazendo quando os aviões atingiram as Torres Gêmeas?”

O que você estava fazendo quando soube que Kennedy foi assassinado? A pergunta era comum nos Estados Unidos, tamanha a importância da tragédia. O choque foi tão grande que marcou o momento com detalhes na memória das pessoas. Onde estavam, o que estavam vestindo, o que tinham dito. O que sentiram ao ouvir sobre o tiro. Os detalhes mais bobos tinham se gravado em fogo com a violência do tiro.

Décadas depois a pergunta se tornou “O que você estava fazendo quando os aviões atingiram as Torres Gêmeas?”. Eu não era vivo quando Kennedy foi assassinado, mas consigo me lembrar perfeitamente dessa. Estava trabalhando, a notícia chegou por um office-boy e eu não dei a menor importância. Quando mais pessoas começaram a falar eu achei que um piloto bêbado tinha errado uma curva e batido o teco-teco. Depois chegaram as imagens, com elas vieram as mensagens do fim do mundo. As pessoas ao redor riam, nervosas, esperando pelo inicio de uma guerra e a pergunta era se aquilo podia chegar até o Brasil.

Só tive sensação similar em 23 de outubro de 2018. Urnas praticamente apuradas, vitória clara de Jair Bolsonaro, recorde de votos brancos e nulos. Na rua o ônibus foi parado por uma multidão de camisa verde e amarela, tocando cornetas, em clima de final de copa do mundo. No ônibus uma mistura de sentimentos. Lembro bem de um rapaz com fones de ouvidos, olhando para o celular e balançando a cabeça, indignado. O rosto lavado de lágrimas, sem segredo algum. Lembro de uma senhora negra no telefone dizendo para alguém que agora não tinha mais o que fazer. Podia não ter relação, podia ser coisa da minha cabeça, mas a gente se agarrava na troca de olhares, como forma de apoio mútuo. Um alento que dizia que não estávamos sozinhos. Não demorou muito para ver os primeiros sinais de que havia algo errado. Passando diante de dois policiais ouvi o comentário. “Agora a gente pode sentar o dedo sem dó.”

Minha vizinha dizia que era o fim da roubalheira, o dono do bar da esquina queria receber uma arma e pagar menos imposto. Meu cliente queria pagar menos direitos aos seus empregados, meu pai torcia pelo melhor. Muitos amigos comemoraram o fim do politicamente correto, alguns creditavam a vitória a Deus. Seria um governo terrivelmente cristão.

As vezes penso no que houve com essas pessoas. O bar da esquina eu sei que fechou muito antes do covid-19 e eu continuo baixando a cabeça e puxando as cachorras para se apressarem sempre que passo perto de um policial. Meu pai entendeu logo que torcer não resolvia nada. Dos outros eu não sei quase nada pois escolhi me afastar. Soube que alguns se arrependeram, mas não tenho consolo algum nisso. Gente que dizia que não via problema em o presidente ser homofóbico, que o seu trabalho não era vigiar com quem cada um transava. Gente que dizia que não era que ele fosse racista, mas que a maioria dos bandidos eram negros mesmo. Gente que desdenhou de cada medo e advertência que chegava ao seu ouvido, simplesmente porquê não era seu medo, não era a sua vida. Não era ele quem estava em perigo.

Não sinto falta de ninguém. Não tenho como sentir falta de alguém que despreza o perigo dos outros e que de repente entende a burrada, mas só quando ele mesmo corre perigo. No dia 23 de outubro de 2018, um terço das pessoas que eu conhecia sumiu. Em seu lugar surgiu uma trupe monstruosa que veste pele humana, mas não disfarça muito bem. Gente que vai a igreja, que ajuda o vizinho, que oferece sopa ao morador de rua e tenta, de todas as formas, dizer que é uma pessoa de bem, exatamente como o presidente. Uma pessoa de bem. Ele não pode ser ruim, não pode ser burro, não pode ser incompetente. Ele é exatamente como eu, então tem que ser uma pessoa de bem, não é? Eu sou uma boa pessoa, não sou?

Ao leitor que estiver recebendo isso no futuro, sobre os escombros do que foi a humanidade, espero que você saiba a verdade. Um terço da humanidade morreu naquele dia, os dois terços que restaram agonizaram por escolhas que não fizeram. Onde você estava quando a humanidade acabou? 

Leave a Reply

More news