O café fraco e sem açúcar combinava com seu ânimo. Experimentou-o com um gole e queimou a língua. Pousou-o no mármore do balcão e aguardou sabendo que logo também estaria frio.
– É isso. Terminou. – Juliana disse ao seu lado. – Perdemos.
No fundo do bar as pessoas comemoravam abraçadas, lágrimas nos olhos, incongruentes gritos de ódio. A desforra sempre foi um sentimento burro. Rojões explodiam pela noite.
– Perdemos quatro anos atrás. Hoje eles perderam. – Luiz apontou para o grupo que comemorava.
Por mais frustrante que fosse a derrota, havia uma estranha sensação de paz. Sua consciência estava tranquila com suas escolhas e aquele era outro sentimento inútil. De que adiantava estar com a razão se o mundo todo estava indo para o inferno? O orgulho não lhe serviria de nada. Melhor seria estar errado.
– Não quero ir para casa. Quer fazer alguma coisa? – Juliana pediu.
Seus olhos castanhos ficavam quase verdes quando ela começava a chorar. Até o último instante, Juliana acreditou na chance de vitória, mesmo contra todas as profecias de Luiz. A derrota pesava mais sobre seus ombros do que sobre os dele. O que ele queria era ir para casa e acender um baseado, mas resolveu que não devia deixa-la sozinha.
– Tem uma turma se encontrando no largo. Lá no vão eles estão comemorando.
Percebeu que provavelmente por isso Juliana tinha marcado ali, a meio caminho tanto de um lado como do outro. Ela concordou acenando a cabeça e ajeitou os óculos grossos sobre o nariz quando eles ameaçaram cair. Luiz pagou a conta, esquecendo-se completamente do café e eles seguiram pela rua.
Era uma noite estranha. Os domingos sempre lhe pareceram o lar das pessoas que não tinham família, com suas ruas silenciosas e portas fechadas. Grupos de bêbados se juntavam aqui e ali, desafiando os céus aos gritos, ou lamentando ao chão o medo. Juliana estava no segundo grupo.
– Se tivéssemos mais tempo, teríamos conseguido. – Ela insistiu.
Luiz duvidava. Tinham perdido antes mesmo de começar. Havia lutado apenas por não ter mais o que fazer. Queria se firmar do lado correto da História. Se houvesse História.
O pensamento lhe revirou o estômago. Queria ter mais tempo, mas não por isso. Só queria evitar o que viria.
Um carro fazia ziguezague pela rua vazia. Fazendo os faróis altos dançarem até se firmarem na sua direção. Luiz sentiu que algo estava errado. Parou, segurou o braço de Juliana chamando a sua atenção. O carro rosnou em sua direção enquanto ele procurava onde se esconder. Viu um poste, colocou Juliana de costas para ele e se pressionou contra ela, torcendo para o concreto aguentar.
– Chupa, filho da puta! – O homem gritou enquanto o carro cantava pneu, dando dois tiros para o alto.
Juliana se agarrou ao seu pescoço, gritando de pavor, enquanto Luiz tentava escondê-la.
– Meu deus! Meu deus! – Ela repetia sem parar. – O que foi isso?
– É melhor irmos embora. Está cheio de maluco na rua.
– Por favor, não! – Juliana pediu.
Continuavam colados atrás do poste. Luiz percebeu que tinha um dos joelhos entre as pernas de Juliana e ela ainda estava agarrada ao seu pescoço. Luiz era bem mais alto do que ela e tinha uma visão privilegiada dos seus lábios carnudos naquele instante. Sentia-se nervoso, como quando era uma garotinha.
– Está muito perigoso! – ele insistiu, quase aos sussurros.
– Sempre foi perigoso. – Juliana provocou.
Se beijaram. Um beijo longo e caloroso mas estranhamente triste. Como o último beijo que você dá em alguém antes de se separarem. Por um instante Luiz se esqueceu de toda aquela merda mas então voltou a se lembra do risco que corriam naquele lugar. Se afastou, sentindo Juliana mordendo levemente seu lábio inferior.
– Então vamos rápido. – Declarou.
Andaram ombro a ombro, sem coragem de se tocar novamente, mas a noite já não parecia tão triste.
Passaram por um grupo de policiais pouco antes de chegar ao largo. De braços cruzados, olhares irritados, pareciam contrariados em ficar ali. Juliana e Luiz não os encararam, não queriam que tivessem desculpas. Apressaram os passos e sumiram de vista, se misturando na segurança da multidão. Estava cheio. Muito mais cheio do que de todas as outras vezes, o que era bom. Havia certa segurança em saber que não eram os únicos. Uma drag ainda mais alta do que Luiz, passou por eles afastando os cabelos dos olhos e lhes entregou uma vela.
– Adorei seu cabelo! – Juliana sorriu.
– Obrigada, darling! Mamãe quem fez! O seu também é lindo!
Juliana amassou os cachinhos, deixando-os ainda mais armados. Tinham um perfume cítrico, que Luiz podia sentir de longe.
– Você sabe se alguém vai vir falar? – Luiz perguntou.
– E dizer o quê, amor? – A drag respondeu. – Não tem muita coisa aberta. A maioria trouxe bebida de casa, mas se você procurar vai encontrar uns ambulantes. Tá meio caro, mas…
Luiz agradeceu. Juliana o puxou pela mão para o meio da multidão. Achou que tinha avistado alguém conhecido, mas tinha se enganado. Quando mais se misturavam a multidão, mais apertado ficava. Por instinto perceberam que estavam se aproximando de algo. Chegaram a um grupo de pessoas que cantavam ao som de um violão.
“Acender as velas, já é profissão, quando não tem samba, tem desilusão…” Juliana cantou junto, mas Luiz não conhecia a letra. Achou que fosse alguma coisa do Chico, mas resolveu não arriscar com medo de estar errado. Foi esperto.
– É do Zé Keti. – Juliana pareceu adivinhar a questão em seu rosto.
Tímida, enroscou os dedos nos dele, sentindo-se segura na multidão. Ele retribuiu com um sorriso, mas tomou um susto quando percebeu dois pares de olhos em sua direção.
– Desculpe, não queria encarar. – A mulher falou. – Vocês são um casal bonito.
Luiz ficou vermelho, enquanto Juliana era só sorrisos. Ambos lutavam contra o constrangimento.
– Esse é o Pedrinho. – A mulher indicou o menino empoleirado em seus ombros. – Diz oi, filho.
Pedrinho se encolheu, ainda mais tímido do que Luiz e Juliana juntos. A mulher sorriu, deu mais um passo na direção dos dois, e bem perto, para que eles ouvissem sem ela precisar gritar completou:
– Desculpe. Eu não achei que fosse verdade. Desculpe.
Surpreso, Luiz se afastou. Olhou para a mulher e viu lágrimas de sinceridade em seus olhos. Tomou fôlego para manda-la tomar no cu, mas foi contido por Juliana que apertou com força os seus dedos. A mulher se afastou, com o filho nos ombros, deixando-os em frangalhos.
– A gente precisa encontrar uma cerveja. – Juliana disse por fim.
– Ou alguma coisa mais forte. – Luiz concluiu.
Não tiveram tempo nem para uma coisa, nem para outra. A música parou repentinamente, junto com as vozes, os sorrisos, os choros. O único barulho parecia ser o de um helicóptero que, bem alto, registrava cada movimento da multidão. As pessoas começaram a acender as velas, umas nas outras, como se dois milhões de tristezas se incendiassem ao mesmo tempo. A luz das chamas, de alguma forma, parecia mais forte do que a iluminação amarelada dos postes. Juliana levantou sua vela bem acima da sua cabeça, incentivando Luiz a fazer o mesmo. Ele hesitou. O coração apertado de dor. Juliana limpou uma lágrima, por baixo dos óculos. Ele queria beijá-la novamente. Queria beijá-la para sempre.
– Promete não me esquecer? – Luiz ouviu-se perguntar, quase como se a voz não fosse sua.
– Nunca. – Juliana garantiu.
Permaneceram sem se mover. Se tivessem mais tempo, teriam conseguido. A voz de Juliana se repetiu em sua cabeça e ele quis acreditar naquilo pela última vez.
– Foi uma luta bonita, né? – As lágrimas já não tinham vergonha em escapar, embora ela tentasse sorrir.
Ouviram um zumbido como se o próprio céu estivesse vibrando e viram as pessoas fechando os olhos assustadas, mas não eles dois. Não queriam se perder agora. Sentiram uma pressão sobre seus ombros e um gosto metálico em sua boca.
– Foi. – Ele sorriu de volta.
Não houve outro aviso. De um instante para o outro, como pelo sopro terno de uma brisa do mar, todas as velas se apagaram ao mesmo tempo, deixando o largo completamente vazio. Não restando nada de Luiz e Juliana além de cinzas, duas gotas de lágrimas e um pedido tardio de desculpas.
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