“Eu te amo de verdade, cara. – Ele me disse – Por isso eu vou ter que te matar.” Eu tomei um gole do café, que já ia frio àquela altura, para fingir naturalidade enquanto pensava no que dizer. Aquela conversa não era nada do que eu esperava.
Eu e a minha namorada tínhamos saído de um restaurante em Pinheiros. Depois de meses de uma dureza sem fim, tinha pintado um dinheiro e eu resolvi leva-la para comemorar em um restaurante que ela queria conhecer. Programão classe-média, aquelas coisas que a gente vê nos filmes e fica doido para repetir um dia. Era o nosso. Bebemos pouco e saímos cedo, passava das nove da noite quanto caminhávamos para casa comentando sobre o jantar. A chuva tinha parado e a rua já estava cheia de gente novamente, bebendo, rindo ou correndo apressados para a estação de metrô, loucos para chegar em casa.
Foi ali que eu encontrei o Flávio sentado no chão, com o olhar nebuloso passeando pelo nada. Não dá pra dizer que as pessoas não o notavam. Os seguranças do metrô já estavam a postos, as mulheres ao redor demonstravam desconforto, Flávio oscilava para frente e para trás, procurando por algum equilíbrio. Dei uma breve olhada para a minha namorada e me inclinei para perguntar se estava tudo bem. Era óbvio que não estava. Flávio sorriu, falou algo incongruente que eu não consigo nem dar sentido para escrever aqui e tentou se levantar sem sucesso. Perguntei se ele queria tomar um café comigo antes de ir para casa. Ele disse que sim, mas que insistia em pagar.
Flávio era pequeno e magro, parecia só um cara comum que tinha tido um dia ruim. Não sou nenhum filantropo desses que fica se gabando de entregar sopa para quem precisa. Sinto o mesmo aperto no coração quando vejo uma mulher com bebê de colo pedindo dinheiro que você e provavelmente assim como você, as vezes ajudo, as vezes ignoro. Por que motivo eu parei para o Flávio, a gente nunca vai saber, mas eu o ajudei a se levantar, olhando para minha namorada em busca de alguma aprovação e ele me abraçou, agradecendo por eu ter parado. Caminhamos abraçados até o boteco mais próximo, como velhos amigos.
Ele insistia em pagar, eu não me opus. Pedi dois cafés pretos e nos sentamos de frente um para o outro. A primeira pergunta que o Flávio me fez, foi o motivo de eu ter parado por ele e essa resposta eu não tinha para dar. Disse apenas que senti que ele precisava de um café. Minha namorada riu simpática, o nosso café chegou, queimado como o fim do dia e eu fiz o meu novo amigo tomar um gole. Então as coisas começaram a ficar um pouco estranhas.
“Cara! – Flávio disse. – Você não sabe quem eu sou, cara! Porquê você parou?”
Realmente, não sabia. Fiquei tentando adivinhar. Flávio, na casa dos 40, pequeno e magro, no mesmo porte que o meu avô tinha. Cabelos negros, prótese dentária. Olhos miúdos e cheios de ruga, um cara comum, vestindo uma daquelas camisas polo de camelô e calça jeans. Não tinha ideia. Achei que ele trabalhasse ali perto e tentei descobrir quem ele era, mas o Flávio não facilitava, intercalando palavras desconexas com grunhidos sem sentido.
“Quem é você, Flávio? O que você faz?” Na minha cabeça aquela pergunta soou como uma entrevista da Marília Gabriela, mas a curiosidade era genuína. Sou um colecionador de histórias e queria saber qual era a dele.
“Cara, você é um cara bom. Vai se decepcionar comigo. Porquê você parou para mim?”
Quem eu era para me decepcionar com alguém? Tinha nas costas uma mochila cheia de fracassos e pecados. Tinha decepcionado muita gente, tinha irritado outras tantas. O melhor que eu podia dizer sobre mim mesmo era que estava de pé e seguia em frente. Tentei convencer o Flávio de que eu não iria me decepcionar, talvez ele só precisasse desabafar, todo mundo já sentiu uma necessidade de desabafar com um estranho. Alguns a atendiam, outros não.
“O que você faz, Flávio?”
“Você é um cara bom! – Ele continuou insistindo nisso. – Eu sou contra tudo o que você é.”
Acho que todos nós somos bons e ruins, ao mesmo tempo e tudo misturado e eu disse isso para ele. As vezes a gente faz merda, as vezes a gente acerta. Entre uma coisa e outra, vamos levando a vida. Queria explicar isso direito, mas não sei se ele me entendeu. Reclamou que o café estava amargo e eu ofereci o açúcar que estava em cima da mesa.
“Posso te dar um beijo?”
Eu dei risada. Minha namorada também riu. Eu disse que gostava dele, mas que não era para tanto. Ele pegou minha mão e beijou como se fosse pedir uma benção. Constrangedor. Então pediu um abraço e eu me levantei e o abracei por cima da mesa, com apenas um dos braços em outro momento constrangedor, enquanto minha namorada escondia o meu cofrinho, tentando dar alguma dignidade a cena.
“Você vai se decepcionar comigo. Você é um cara bom e eu não sou.”
Ele era repetitivo. Não conseguia terminar uma ideia. Fiquei pensando se ele iria conseguir chegar em casa. Descobri que ele morava no Ipiranga. De Pinheiros para lá, tinha bastante chão. Fui descrevendo o caminho que eu faria para chegar no Ipiranga, mais para saber se ele iria pegar o metrô ou um táxi.
“Linha amarela até a verde, daí da verde direto até o Ipiranga, certo?”
“O seu arrombado! – Ele gritou. – Eu sei como eu faço para chegar em casa.”
Não precisava nem olhar para o lado para sentir o medo da minha namorada. Não era a primeira vez que a gente tinha se metido em alguma roubada. Havíamos passado por uma noite lendária, certa vez, que terminou em um proibidão com um cara usando loló e dizendo que eu podia ficar tranquilo que ali era ele quem comandava, mas isso era outra história. Estávamos bêbados demais para sentir medo. Com o Flávio o negócio era sóbrio.
“Ah. – Pensa rápido. Pensa rápido. Pensa rápido. – Mas eu não sei como chegar no Ipiranga, me explica como faz?”
Não sei se foi o medo ou o assunto, mas eu vi o sorriso do Flávio desaparecer junto com as ruguinhas no canto dos olhos. Poucas vezes eu vi tanta raiva no rosto de alguém e fiquei pensando na segurança da minha namorada. Flávio era bem menor do que eu e mal podia parar em pé, mas a gente nunca sabe do que um desconhecido era capaz. Quem é você, Flávio?
“Você é um cara bom. – Ele disse, desta vez sem sorrir, depois se virou para a minha namorada. – Ele é um cara bom.”
Senti a dificuldade que ela teve para sorrir naquele momento e fiquei pensando em como sairíamos daquela situação. Eu podia ter passado pelo Flávio sentado na calçada sentindo apenas uma genuína piedade, mas agora eu sabia o seu nome, tínhamos tomado um café e eu me sentia responsável por ele, mesmo que naquele instante ele não parecesse se importar com isso.
“Ela é linda! Parece uma princesa!” Flávio voltou a sorrir, mas ainda existia algo sombrio no jeito que ele estava falando.
A atenção que ele deu a minha namorada começou a me incomodar. Eu pedi para ele tomar o café antes que esfriasse, embora de fato já estivesse gelado. Ele obedeceu, como uma criança tomando um remédio amargo. Então se lembrou de alguma coisa e toda a tensão pareceu desaparecer.
“Eu vou te favorecer! Você não sabe quem eu sou!”
Achei graça. Na minha cabeça inventei uma história sobre como eu ajudei um bêbado um dia e descobri que ele era um grande milionário que me tiraria da pindaíba. Perguntei o que ele queria dizer. Como assim me favorecer?
“Eu vou te favorecer! Eu tenho uma filha.”
Era meio difícil saber se ele já tinha mudado de assunto, então eu pensei em focar na filha dele, talvez fosse um jeito de descobrir quem ele era. Pensei que fosse uma criança, ele podia pegar o celular ou abrir a carteira e me mostrar fotos fofas e a noite ficaria um pouco mais leve. Perguntei que idade ela tinha.
“Ela tem vinte dois anos. Eu vou te favorecer!”
Dei risada quando entendi que ele estava querendo me apresentar a filha dele. Disse que pegava mal, minha namorada estava ali do lado ouvindo tudo. Ia dar ruim em casa. Ele riu, tentou se explicar, chamou a minha namorada de satiko, mitiko ou qualquer outro sobrenome japonês, insinuou que ela não soubesse falar português e começou a dizer que eu tinha sorte e ela era uma princesa linda, conseguindo ser racista, escroto e fofo, tudo ao mesmo tempo. Eu disse que sabia da sorte que eu tinha, mas para ele não ficar falando aquilo em voz alta, se não ela podia se ligar e acabar fugindo. Flávio riu. Não sei se ele entendeu a piada, mas deu risada.
“Eu te amo, cara! Você é um cara bom. Você não sabe o que eu faço. Você vai se decepcionar.”
Eu também já fiquei preso nesses círculos de entropia, girando e girando em torno da mesma conversa, sem nunca sair do lugar. Sabendo que em algum lugar ali tem uma porta, mas tateando no escuro para encontrá-la. De novo e de novo. Minha curiosidade estava me matando. Como aquele cara tinha chegado até ali? Para onde ele estava indo? Será que ele tinha alguém para telefonar?
“Mas o que você faz, Flávio?”
“Eu matei dois homens.”
“Há uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo Homem. É uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos temores do Homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da fantasia. Uma região Além da Imaginação.”
Tenho em mim duas pessoas. Essa que vive o dia-a-dia, decide onde jantar, escolhe levantar um bêbado na rua, e leva a cachorra para passear. E a outra, que observa em silêncio pétreo, sentada do alto de seu trono, julgando cada uma das minhas decisões com ar de superioridade racional. Enquanto a primeira se desesperada, arranca os cabelos, implora pela vida ou grita com um motorista na rua, a segunda segue impávida, tomando o controle de tudo com a frieza de quem sabe que o resultado final será sempre a morte. Foi essa criatura sem alma quem tomou conta do meu corpo naquele momento e me obrigou a sorrir, tomar um gole do café que àquela altura era mais gelado do que a minha lápide e a responder:
“Eu também já quis matar alguém. Essas coisas acontecem.”
O quê? Meu eu desesperado gritava dentro da minha cabeça. Essas coisas acontecem?
Defcon 4. Um segundo para a meia-noite. Fuja para as montanhas. Save or Souls.
Minha namorada aproveitou um minuto de distração do nosso convidado para sinalizar que devíamos ir embora. Eu não podia concordar mais, mas fiquei com medo de me levantar e causar uma cena. Sugeri que já estava ficando tarde.
“Eu te amo de verdade, cara.”
Ele pegou a minha mão em cima da mesa e a beijou novamente.
“É por isso que eu vou ter que te matar!”
Novamente minha mente trabalhando em plots cinematográficos. Flávio virando a mesa com uma faca nas mãos, enquanto eu chutava a cadeira para trás, perdendo um botão enquanto me desvio do seu golpe, minha namorada agarrado a mão dele com a faca e torcendo para depois lhe aplicar um chute giratório no estômago, eu acertando a cadeira em sua cabeça, largando-o desmaiado nos escombros de nossa luta enquanto a polícia chegava e todos batiam palmas.
Ou eu levando três tiros no peito e virando manchete no jornal.
Enquanto eu tentava decidir qual o final daquela história. Flávio dormiu sentado na cadeira. Olhei para a minha namorada que dividia comigo a mesma curiosidade e ansiedade pelo fim da história, sem saber o que devíamos fazer. Ele abriu os olhos de novo, quase sem saber onde estava e eu perguntei se ele queria que a gente fosse com ele até o metrô. Ele disse que estava de carro. Cara, que condições que aquele cara tinha de andar de carro? Pensei em coloca-lo no táxi. Pensei em leva-lo até o carro. Pensei em tomar a chave dele e devolver no dia seguinte. Pensei em leva-lo para casa e deixa-lo dormir no sofá. As variações sobre o tema sempre acabavam nas páginas policiais.
Perguntei se ele queria comer alguma coisa para dar uma melhorada, mas ele não soube responder. Eu pedi a conta, paguei o café que ele queria tão desesperadamente pagar, perguntei se podia ajudar de alguma forma, mas ele já tinha passado da fase maníaca para a fase sonolenta e provavelmente nem sabia que eu estava ali. Sinalizei que íamos embora e vi minha namorada pulando para fora do bar respirando profundamente pela primeira vez. Não sei por que, talvez nunca saiba, apertei a mão do Flávio uma última vez e lhe dei um abraço. “Se cuida, cara. Espero que você chegue bem em casa!”
Fugimos. Do outro lado da rua, sentindo-se em relativa segurança, oscilávamos entre o pavor e a pena, olhando sobre os ombros para saber se estávamos sendo seguidos. Não havia ninguém. A noite seguia normalmente, ignorando a nossa história. Olhei para o bar, para ver se o Flávio tinha dormido na mesa, mas ele já não estava mais lá. Talvez nunca tenha estado. Chegamos em casa com a sensação de que algo sobrenatural tinha acontecido naquela noite. A história toda era cheia de buracos e difícil de descrever, como uma lembrança remota, mas eu sabia que havia sido importante, então me sentei e escrevi tudo o que me lembrava, da melhor forma possível. Na manhã seguinte eu já tinha me esquecido de todo o episódio, mas minha namorada não. Ela olhou para mim e sorriu:
“Eu te amo de verdade, por isso eu vou ter que te matar.” Ela disse.
Mandei ela tomar o café antes que ele esfriasse.
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