Os melhores ingredientes
On May 14, 2023 | 0 Comments

“Bem-vindos ao capitalismo, terra da liberdade, temos cookies e soylent green. São os cookies que matam, mas são feitos com os melhores ingredientes.”

A ideia parece bastante natural: Se você for preparar o melhor prato para um jantar, é importante ter os melhores ingredientes. Se for algo realmente especial, os ingredientes devem ser todos da melhor qualidade e se, por acaso estiver sobrando algum dinheiro, é esta a chance de ir além, certo? Talvez aquele produto exótico que você sempre quis experimentar, afinal, hoje é dia de preparar o melhor dos pratos, e para isso você precisa dos melhores ingredientes.

Estou remontando todo o meu espaço de trabalho. Uma atualização que vinha adiando nos últimos anos, simplesmente porque tudo anda caro demais e minha estação de trabalho, apesar de antiga, funciona exatamente do meu jeito, com tudo no lugar da forma mais conveniente possível. Resistir a mudanças é natural. Eu namoro meu Mac Pro 2012 (carinhosamente chamado de O Tanque) com a mesma paixão que um amante de carros olha para o seu Maverick, mas chega uma hora em que você entende que potência não é tudo e começa a buscar pelo conforto.

O tanque era o computador mais avançado da Apple em 2012, um CPU robusto, todo em alumínio, com espaço para quatro HDs, que podia ser personalizado do jeito que você quisesse e assim foi feito na época. Era a máquina dos sonhos de qualquer designer e se você está se perguntando como um simples designer conseguiu uma máquina dessas sem cometer nenhum crime, você começou a fazer as perguntas corretas.

De 2018 para cá, graças a essa característica da personalização, sempre que sobrava algum dinheiro, eu trocava uma ou outra peça do tanque para mantê-la roncando. Este foi o último modelo de Mac Pro da Apple que permitiu esse tipo de coisa. A política da empresa mudou. Os sistemas ficaram cada vez mais fechados e hoje em dia atualizar um computador com peças novas é inviável. A obsolescência programada se tornou política da empresa.

Por conta disso tudo eu já sabia desde o início que O tanque não teria um substituto a sua altura. Sem querer me alongar muito mais sobre o mundo dos computadores Apple (outro dia falo sobre isso): são caros; ficam mais caros a cada ano e a linha profissional chegou no nível de engenharia da NASA que nem a NASA pode pagar. Inferno! Nem o CEO da Apple deve ter dinheiro para comprar o computador mais caro da Apple hoje em dia.

Então, sabendo que havia um sonho muito impossível lá no céu, juntei todos as janjas que acumulei nos últimos anos com horas não dormidas (freelas, horas extras, prostituição e tráfico de paçocas) e sai correndo, com as calças caindo pela rua, as moedinhas escapando pelos dedos, indo buscar os ingredientes para montar a melhor estação de trabalho que pudesse ter dali em diante.

Tudo o que eu tinha para gastar não era pouco dinheiro, mas quando se fala em investimento de equipamento parecia que estava negociando em bolívares. Foram semanas de pesquisa, negociação, procura, apreensão. Andei por lugares sombrios da internet em busca dos melhores negócios com gente aleatória de todo tipo. Precisei comprar e pagar o cartão de crédito não sei quantas vezes, para ter limite o suficiente para colocar cada item no seu lugar.

Cabos, hubs, cartões de memória. A tarefa era montar uma estação de trabalho com diversos equipamentos diferentes que pudessem substituir de alguma forma tudo aquilo que o Tanque fazia sozinho. Só de escrever isso já sinto raiva. O sistema não dá ponto sem nó. Te faz pagar para trabalhar, agradecer a oportunidade e baixar as calças ainda mais um pouco para facilitar a instalação do cabo de alimentação debaixo da mesa.

Ali estava eu, gastando todo dinheiro que ganhei trabalhando, para continuar trabalhando e ganhando dinheiro. Não faz sentido, mas enfim: “Bem-vindos ao capitalismo, terra da liberdade, temos cookies e soylent green. São os cookies que matam, mas são feitos com os melhores ingredientes.”

Dentre todas as peças do quebra-cabeça que era montar esse espaço, havia uma que envolviam duas peças de altíssima velocidade. Não era uma grande vantagem na substituição do Tanque com seus SEIS HDS de armazenamento, mas poderia ser uma vantagem sutil. Ganharia em desempenho. Era uma chance de transformar toda aquela experiência em alguma vantagem, mas eu ainda tinha a sensação de estar trocando o Maverick por um Neo Beetle.

Passeei pelos fóruns de internet que tinham cheiro de queijo, analisei as reviews nas páginas de compras com toda a minha experiência de comunicólogo, semiótica, crítica genética e técnicas de roteiro. Separei as opções entre o que era viável, o que era pagável e o que era o ideal e quando finalmente tinha certeza de que havia encontrado os dois ingredientes que faltavam, fiz a compra, com um rapaz americano que usava lápis desbotado no olho, ao estilo blink-82.

Semanas mais tarde, confesso que minhas mãos tremiam um pouco quando cheguei em casa e tirei aquelas peças da mochila e olhei para elas com o encantamento de um feiticeiro que estava prestes a realizar incrível com os ingredientes que tinha a mão. Precisei me acalmar diante das peças.

O silêncio que veio foi tão profundo e religioso que, mesmo eu, que fui expulso da igreja, cheguei a ouvir um versículo bíblico:

Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.

Com cuidado desparafusei a tampa de alumínio.

As portas do inferno não prevalecerão contra ela.

Os pequenos parafusos balançavam na ponta da chave imantada.

Eu te darei as chaves do Reino dos Céus”.

Deslizei uma placa do tamanho de um dedo, com cuidado para um soquete de dentes frágeis.

Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus”.

Fixei a placa no lugar e respirei ao ver as primeiras faíscas de vida.

E tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.

(…)

A ideia parece bastante natural. Se você for preparar o melhor prato para um jantar, é importante ter os melhores ingredientes. Se for preparar o melhor carro, tem que ter as melhores peças. É a mesma lógica para todas as coisas, não é?

Em 2017 depois de dez anos trabalhando em uma agência de publicidade, fui mandado embora com seis meses de salário atrasado e sem rescisão trabalhista. Absolutamente cheio de dívidas, o único alento que tive foi O Tanque, que veio para casa comigo como parte do pagamento daquilo todo o que me deviam. O tanque colocou a comida na mesa de lá para cá e eu retribuí como pude, o mantendo ativo, limpo, atualizado e tocando música nas madrugadas em que passamos enfrentando esse mundo hostil. Quando me disseram que a Apple não lhe daria mais suporte ao modelo, ouvi a notícia com a tristeza de quem vê o pai se levantar com dificuldade pela primeira vez, mas não desisti dele. Ultrapassei o limite, empurrei um pouco mais. Só nós dois sabíamos tudo aquilo o que enfrentamos.

“Sobre esta pedra…”

Quando eu finalmente me convenci que a tampa da placa não ficaria no lugar, senti vontade de chorar. Semanas de esforço. Rios de dinheiro. Uma quantidade de stress que não sei como pude administrar e não estava nem na metade do trabalho, mas se pelo menos aquelas duas peças tivessem se encaixado. “Tudo o que ligares…

Desabei. Estava exausto demais para conseguir pensar em outra coisa exceto desabar. Sentei-me no chão, com tudo o que eu tinha de dinheiro entre os dedos acreditando em recomeços e superação, mas estava sendo vencido por 2 milímetros de alumínio, porque ao invés de comprar a placa recomendada, gastei 1 dólar a mais numa placa que esfriaria mais rápido e era, por tanto, melhor. Uma pechincha. Apenas um dólar pelo melhor ingrediente.

Os melhores ingredientes nem sempre fazem o melhor prato. Você pode juntar os temperos mais exóticos, as carnes mais finas, as farinhas mais perfumadas, mas se você não souber o que está fazendo, vai terminar com um bolo de merda, como qualquer padeiro de fim de semana. Eu sou a prova viva disso.

Sentado no chão do escritório, o que me acalmou foi o zumbido baixo das ventoinhas do Tanque. Não sei chorando comigo ou se rindo de mim.


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*“(…) sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. (MT18-19)

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