Quando eu me mudei para essa casa, ouvi a inveja dos vizinhos de apartamento dizendo que em casa sim temos privacidade. Eu sou um vizinho quieto, não ouço música alta, dificilmente dou festas, gosto de escrever em silêncio e relaxar na rede do quintal. Mudar para uma casa nunca teve nada a ver com privacidade, mas sim com reduzir os custos de aluguel e ter um quintal para as cachorras tomarem sol nessa época de pandemia, o que deu super certo, diga-se de passagem. Agora, essa história de privacidade realmente se provou uma lenda.
Faz quase um ano que estou morando por aqui e descobri que a vida em comunidade no bairro é mais invasiva do que o cumprimentar educado nos elevadores do prédio. Existe sempre algo acontecendo e sempre alguém conversando. As vezes a noite é cheia de risadas, as vezes é silenciosa como uma cidade do interior, mas a vizinhança vive, alternando amor e ódio.
No início de Março fomos sacudidos por uma forte chuva. A água que entrou pela janela ensopou meu sofá e o fluxo de água foi tamanho que uma goteira surgiu no meio da sala. Preocupado com a estabilidade de uma casa velha, acompanhei a tempestade da porta, vendo um rio se formando no meu corredor no caminho para a rua. Em seguida a chuva acabou. Sequei o sofá, marquei o lugar da goteira, verifiquei o estado do quintal, voltei para minha vidinha sem grandes problemas.
Só depois de algumas horas que as mensagens surgiram no grupo de vizinhos. Vídeos da rua alagada, fotos da água na porta das casas, imagens assustadoras de um carro boiando para dentro de um sacolão que fica a poucos metros de nós. Uma catástrofe imensa a qual eu estava absolutamente alheio e que acabou levando à conversas sobre alagamento e providências.
O histórico da rua é conturbado. Abaixo dela existe um rio e na sua lateral havia um braço para a água excedente que foi construído para evitar que alagamentos daquele tipo viessem a acontecer, mas sobre essa abertura foram construídos prédios irregulares e ai começaram os problemas.
As vezes é cansativo viver em comunidade. As vezes eu queria apenas ficar quieto no meu canto e fingir que o problema não é meu e faço um esforço para me lembrar que posso pegar minhas coisas e ir embora, deixando todos os problemas para o próximo inquilino, mas é difícil ignorar quando as coisas estão erradas. E foi quando um dos prédios que obstruíram a passagem de água resolveu fazer um ladrão para a nossa rua, que a coisa voltou a se complicar.
Marcelo é um homem baixo, que não chega a 1,60. Bastante calvo, um pouco acima do peso, com um nariz em forma de gancho e lábios finos que parecem estar sempre sorrindo. Sua fala é calma, passivo-agressiva e cheia de acidez. Não sei o seu sobrenome, ele se recusou a me dizer, mas é síndico do prédio que começou a obra. Depois que os vizinhos foram no prédio tentar se informar sobre o que estava acontecendo, ele resolveu aparecer na rua para ver se estávamos mentindo.
Eu realmente não queria me envolver pessoalmente na história. Minha saúde mental não anda das melhores e eu não precisava de mais esse problema, mas ouvi Marcelo falando com uma vizinha que tentava explicar com toda calma do mundo o problema que a rua tem com enchente, enquanto ouvia em tom de superioridade que aquele problema não era dele e que ela devia resolver com a prefeitura. Eu não queria me envolver, não precisava disso naquele momento, mas em dois segundos eu estava na rua, apertando a mão do sujeito e deixando claro que a senhora não estava sozinha.
O problema do Marcelo é que eles tamparam a saída de água do rio para fazer um estacionamento. Assim como nós, a chuva o atingiu com a realidade. A agua acumulou e o estacionamento do prédio virou uma piscina. A solução do Marcelo foi empurrar o problema pra frente, abrir um ladrão no muro de contenção e jogar o excedente do seu prédio para a minha rua. Deu essa resposta sem o menor constrangimento, explicando que o muro era seu e que ele tinha aquele direito.
Não demorou muito para entender que não dava para conversar com o Marcelo e que ele não se importava se alguém perdesse uma casa. Ele era daquele tipo de pessoa que tinha sido bastante sacaneado quando era criança por causa da altura e agora sentia prazer em usar o seu pequeno poder para se vingar do mundo. Demorou menos ainda para entender que tudo o que Marcelo queria era que eu perdesse ali o meu réu primário. Respirei fundo, voltei para casa, relatei tudo para os vizinhos e comecei a saga de tentar contato com a prefeitura, o que me levou em um passeio pelos três dígitos de todos os serviços telefônicos que você possa imaginar, ficando de lado apenas ligar para a polícia.
Entre as inúmeras ligações insólitas que eu fiz naquela tarde, a mais bizarra foi com a defesa civil:
– Quero denunciar uma obra. O prédio vizinho está abrindo buracos no muro de contenção para escoar a água do alagamento do estacionamento na minha rua.
– Senhor, sua rua está alagada, senhor?
– Não, mas a rua tem histórico de alagamento. Ele tá mexendo numa obra da prefeitura e aumentando o risco dos moradores.
– Entendi, mas o risco é imediato?
– Que?
– O risco dos moradores, é imediato? Tem alguém em perigo, senhor?
– Quando chover vai ter.
– Se o risco não é imediato, o senhor precisa entrar em contato com a prefeitura.
– Já liguei, mas a prefeitura vai levar 60 dias para avaliar o caso, até lá estamos em risco.
– Entendi, mas o risco é imediato, senhor?
–…
Naquele ponto a dor de cabeça já tinha me vencido. O sistema trabalhava em favor do Marcelo, que achou engraçado quando eu disse que uma casa da rua tinha sido destruída pela enchente e que se acontecesse de novo ele seria responsável, mas parou de rir quando perguntei o sobrenome dele e o RG, dando um passo para trás porquê se sentia ameaçado. Eu entendo porquê Marcelo se sentia ameaçado. Depois do desprezo que ele mostrou com todo mundo, depois de dizer com todas as letras que o que importava para ele é que o carro dele não acabasse boiando, eu imagino que minha cara já não fosse muito amigável. Marcelo foi se afastando, um passo por vez, antes de virar as costas e ir embora. Minha vizinha ainda o acompanhou tentando convencê-lo, mas fiquei pelo caminho. Pela segurança de todos, era melhor eu ir para casa.
Fiz uma reclamação na prefeitura que tem sessenta dias para me dar resposta. Liguei na minha imobiliária que, como era de se imaginar, não ajudou em nada. Os vizinhos estão rosnando de raiva, mas aleatoriamente, sem saber o que fazer. O calor hoje está insuportável e vejo nuvens cinzentas se avolumando no céu.
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