Todas as crianças são más? Você já conhece esse filme. O rapaz tímido e de bom coração, ligeiramente deslocado das pessoas ao seu redor, acaba caindo no radar do valentão da escola, precisa confrontá-lo para tornar-se uma pessoa melhor e ficar com a garota no final. Eu também já vi esse filme, de fato, assim como você, também estive nele. E é por se reconhecer na história que as pessoas gostam tanto dessa luta de Davi e Golias. Eu não.
Sempre achei estranho que existam tantas pessoas que tenham sido perseguidos, mas tão poucos valentões da escola e sempre me questionei sobre o que acontecia com essas criaturas violentas e meio burras, depois que cresciam. Dissolviam-se no ar quando perdiam a sua única função na história? Transformavam-se em pedra ao enfrentar a luz do dia? Como era possível que você não encontrasse um desses babacas na mesa de bar, enquanto todas as suas vítimas estavam por ali, lidando com os traumas da sobrevivência? Se você conversar com as pessoas, descobre que todas tem uma história em que foram perseguidas e que se identificam com Davi.
Eu conheci um Davi de verdade. Era uma criança baixa e muito pobre, que usava roupas rasgadas e muitas vezes não cheirava bem. Nada disso era incomum na escola onde eu estudava. Haviam muitas crianças que frequentavam as aulas só por causa da merenda, mas também estavam lá os filhos da classe média, que não viajavam para a Disney, mas tinham três refeições fartas por dia. Davi não se destacava por nada disso, mas era provocado por ser muito loiro, ter uma irmã que parecia sua cópia com o cabelo comprido e por ter um dedinho a mais em uma das mãos.
“Quem bate esquece, mas quem apanha nunca esquece.” Alguém uma vez me disse e eu acho que isso explica uma parte história, mas se eu pudesse apostar, diria que ninguém gosta de olhar para trás e se enxergar como o vilão. É mais confortável contar suas histórias de superação do que as de atropelo, principalmente quando você era o trem e não o atropelado.
No estranho organograma do intervalo, as vezes Davi se sentava do meu lado na hora do almoço e eu frequentemente deixava ele comer o meu lanche, sem vaidade ou pena, apenas porquê era algo que eu não gostava ou porquê queria brincar e não perder meu tempo comendo. Foi assim que descobri que Davi tinha um sexto dedo e achei engraçado pois ele só tinha o dedo em uma das mãos, enquanto eu tinha nas duas.
Quem me visse sentado com Davi, dividindo meu almoço e comentando sobre como era uma vantagem contar nos dedos até doze ao invés de contar até dez, me confundiria com o garoto de bom coração do filme da sessão da tarde, o que faria sentido, por que eu sempre fui pequeno e muito magro, com o cabelo grande, um bigode fino e todos os motivos para ser alvo de zombaria, o que até acontecia com frequência, mas isso não me impedia de passar adiante a minha miséria, provocando e humilhando quem estivesse abaixo de mim na cadeia alimentar.
Embora naquela época eu não entendesse isso, hoje eu consigo enxergar meu lugar na história dos outros alunos. Sinto vergonha. Mesmo não sendo muito grande, havia se espalhado pela escola que eu era meio doido e que não gostava de ser provocado. A fama se juntou ao fato de que sempre tive amizades estranhas, e eu consegui um espaço bastante confortável da pirâmide escolar, onde pouco me atingia.
Haviam muitos alunos maiores que eu que eram briguentos de verdade, que andavam pelo intervalo dividindo a multidão como Moisés dividiu o Mar Vermelho, mas não era meu caso. Eu tinha amigos, fazia teatro, jogava vôlei, ia bem nas aulas. Os professores me adoravam e eu não me metia em confusão. Dava bons conselhos, não colava nas provas e não escapava das aulas, mas se eu abrisse a boca para responder alguém, era capaz de fazer a outra criança chorar se eu quisesse.
Dia desses minha mãe me lembrou de um garoto que foi meu vizinho quando morávamos em um cortiço. Um garoto pobre, como eu, em uma situação difícil como a minha, cuja mãe tinha se entendido com a minha forjando uma obrigação não oficial para que nós nos tornássemos amigos. Por mais que tentasse, não sei dizer a razão, era impossível gostar do garoto e eu fazia de tudo para que ele ficasse longe.
Não me lembro de muitos detalhes, e não estou dizendo isso esconder os meus crimes, o pouco que me lembro é o suficiente para me cobrir de vergonha por duas vidas, mas realmente são só fragmentos e sempre me fazem pensar no universo de coisas que meu cérebro não quer que eu saiba, tentando me convencer de que eu não era o vilão da história.
Lembro por exemplo de uma cena fora de contexto, em que eu e um grupo de outros garotos riamos daquele menino no centro de uma roda, inteiramente molhado e nu. Uma lembrança tão vaga que só a vergonha me prova que ela foi real e não algum sonho bizarro.
Não foi um caso isolado. Agora mesmo, rostos e nomes passeiam pela minha mente, apelidos terríveis, confrontos diretos. Pegadinhas “inocentes” e não tão inocentes assim. Gente cuja vida me esforcei para transformar em um inferno, senão por todo o sempre, pelo menos enquanto estivessem por perto por uma razão ou outra que é difícil de imaginar agora.
Naquela época não me julgava o valentão da história. Gostava de fazer piadas e parte delas envolvia zombar dos outros, mas não achava que aquilo me tornava uma pessoa ruim, assim como não achava má ideia pregar peças em crianças de quem eu não gostava e que queria simplesmente manter afastadas.
Parece estranho pensar que algumas amizades simplesmente não me interessavam e que ao invés de dizer isso, tentasse fazer com que a pessoa não quisesse ficar por perto, o que não explica nem melhora o meu comportamento, mas traz à tona uma pista do porquê eu agia daquele jeito: queria realmente ser odiado.
Mesmo que boa parte das minhas memórias da escola tenham se perdido, não quero fingir que nada aconteceu. Das humilhações que sofri me lembro de poucas e nenhuma delas importa, mas as pessoas a quem ofendi me assombram, se não nos detalhes, ao menos na vaga certeza de que deveria me envergonhar de ter tratado alguém daquele jeito. Meu arrependimento se tornou maior do que a vergonha.
Eu nunca zombei de Davi. Ele era um garoto triste e deslocado, que tinha poucos amigos e eu não era um deles, mas não me lembro de ter sido ruim com ele por algum motivo ou sem motivo, o que está longe de provar que eu era uma boa pessoa, mas talvez mostre que eu não era completamente ruim, o que talvez seja até pior, já que prova que todas as maldades que eu fiz, podiam ser evitadas e não foram.
Não tenho contato com quase ninguém daquela época e não foram os anos que aprofundaram essas distâncias. Muito antes de me tornar o ser envelhecido e rabugento que vive hoje, já fazia o possível para me distanciar dos outros, sem entender o motivo pelo qual fazia isso.
Hoje consigo olhar para trás e perceber que, mesmo que não houvesse uma ação racional, havia um método por trás de tudo. Me livrei primeiro dos desafetos, depois dos conhecidos, então dos amigos menos próximos, por fim os verdadeiros amigos, até que no fim consegui finalmente o que queria: apagar quase que completamente todo um trecho da minha vida. Como se tivesse algo lá naquelas memórias que eu realmente não quisesse lembrar.
As vezes eu gostaria de entender para conseguir aceitar. Queria saber por que agi assim, por que tratei mal essas pessoas, mas acima de tudo gostaria de pedir desculpas por ter sido uma criança tão ruim.
Embora hoje eu tente ser uma pessoa melhor, isso não apaga as coisas que fiz, só garante que não as faça novamente. Qualquer pessoa que se lembre de mim e me odeie por algo que eu tenha feito, tem toda razão e não vou ofender a inteligência de ninguém com a justificativa de que era “coisa de criança” ou apenas “retrato de outro tempo”. Os tempos podem não ser bons, as crianças podem ser ruins, mas independente dos motivos ou dos mecanismos por trás deles, assumo meus erros e peço desculpas.
Acho que ficou claro que se a vida fosse um filme da sessão da tarde, eu não seria o rapaz tímido e de bom coração que precisa aprender a confrontar seus medos. Teria sido o babaca que sem motivo aparente jogava coisas nas pessoas, ou as pessoas nas coisas, entretendo a plateia com algum espetáculo de humilhação pública ou amedrontando alguém com uma ameaça que não saberia cumprir. Nem todas as crianças são más, mas eu fui, tenho certeza disso.
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