O escritor raramente é mais que um nome na capa, com sorte uma foto na orelha. Só os maiores se tornam propaganda da editora, ou cartazes de divulgação de eventos. Aqueles que descambam para o audiovisual acabam irremediavelmente ofuscados pelo nome de astros, diretores e produtores. São pobres roteiristas, quando muito, produtores executivos, se tanto ou ‘baseados na obra’ e é sobre isso e está tudo bem. Vida que segue. Contas pagas. Próximo livro.
Escrever é quase sempre um ofício solitário. A gente se senta por longas horas, torcendo para não ser interrompido enquanto bate freneticamente em alguma ideia até ela começar a fazer sentido. É um trabalho longo e as vezes bastante cansativo, que ocupa tanto as horas em que estamos mesmo escrevendo, quanto as demais, em que estamos pensando no que vamos escrever em breve. Entre uma coisa e outra, é preciso ver a família, limpar a casa e, com sorte, pagar as contas. Não sobra muito tempo para outras coisas.
A solução que a maioria dos escritores encontra para lidar com essa situação é fazer amizade com outros escritores, o que faz algum sentido. Os horários são estranhos, os problemas são os mesmos, os interesses parecidos, podemos trocar leituras e sugestões e com sorte (glória das glórias) dá até para combinar uma cerveja para que tudo isso aconteça pessoalmente e não por trás dos teclados.
A parte estranha é que, mesmo sabendo disso, falta para grande parte dos escritores o traquejo social para sobreviver em grupo. Talvez tenhamos nos afeiçoado a ideia de que estamos sozinhos. Na maioria das vezes vemos as pessoas como personagens de uma história que a gente não controla e é frustrante que esse enredo não faça maior sentido.
Acho que é exatamente por esse jeito peculiar de ver os outros que existem tantos dissabores entre escritores, afinal, toda história gira em torno de um conflito e se não houverem duas forças opositoras em uma mesma cena, ela parece morta e sem graça. Não faria sentido entrar em um grupo se não houvesse algum antagonismo e se ninguém se voluntariar para a função, cabe ao escritor inventá-lo. Nascem as lendas sobre os colegas invejosos, os haters secretos, os editores vingativos, os fãs obsessivos, tropos e clichês cuja função é tirá-lo de seu mundo ordinário, para mergulhar de uma vez em sua aventura.
Você vê isso acontecer em qualquer agrupamento humano, mas é particularmente intenso em grupos de escritores, pode acreditar, fazem três mil anos, eu estava lá.
Acabei desistindo de todos os grupos e fóruns de escrita. Foi uma grande perda não fazer parte do único grupo com quem eu realmente tinha assunto para falar, mas a verdade é que toda essa novela já estava muito repetitiva. Era sempre a mesma guerra de vaidades, eu gastava melhor meu tempo escrevendo, mas confesso que as vezes sinto falta de ter um grupinho para chamar de colegas e poder pedir para alguém ler um parágrafo e me dizer se parece esquisito.
Com os anos, é claro, consegui contato com alguns autores que eu gosto e admiro e preservei a maioria deles por perto, mesmo que virtualmente. Em duas ou três vezes, inclusive, tentei colar essas pessoas juntas, de forma que pudéssemos nos sentar para beber com livros e folhas de rascunho sobre a mesa. Alguns encontros desses chegaram mesmo a acontecer e renderam excelentes risadas, alguns drinks e (felizmente) nenhuma palavra escrita. Estava divertido demais para isso.
A pandemia teve o seu custo. O isolamento nos fez diferentes. No primeiro ano, roubou nossa sanidade, no segundo ano roubou nossa concentração, é difícil saber o que ela vai roubar nesse nosso terceiro ano. Era de se imaginar que com todo esse vazio, todo esse silêncio, esse tempo vago e sem culpa que os escritores conseguiram ao se trancar em casa, estivéssemos todos escrevendo muito, mas vejo que foi o contrário. Tudo o que foi escrito, o foi com muito custo.
Se eu somasse tudo o que eu escrevi no ano passado, não chegaria a 100 mil palavras. Provavelmente bem abaixo disso, 60 mil ou 70 mil. Pode parecer muito, mas ao longo de um ano são menos do que 200 palavras por dia. Uma ninharia para quem leva o ofício a sério. No primeiro mês deste ano, eu já escrevi 35 mil. E nessa primeira semana de fevereiro, vou facilmente somar mais 10 mil. É esse o ritmo que deveria ser o meu normal. Estou feliz bastante feliz com isso.
Sinto que o foco está voltando ao seu lugar, como se eu estivesse encontrando alguma espécie de normalidade nessa nova rotina. Deveria ser bom, mas é só a natureza se adaptando ao fim do mundo. A vida tentando dar ordem ao caos, da mesma forma que um escritor tenta dar ordem a história enquanto espanca as palavras até que elas saiam.
Voltar a escrever tem me trazido sentimentos contraditórios. Ver as palavras surgindo a minha frente, todos os dias, tem algo de bonito e me deixa feliz, mas é esquisito não compartilhá-las. Como conversar em um quarto vazio, sem ser ouvido.
Como eu disse, escrever é quase sempre um ofício solitário. Talvez seja por isso que existe um esforço tão grande do autor em ser lido. Conectar-se com o que existe lá fora da nossa mente, enviando mensagens em uma garrafa para o mar, na esperança de que uma delas seja encontrada.
Esta é a minha garrafa de hoje, caríssimo leitor. Se você a recebeu, saiba que em algum lugar, de alguma forma, eu estava pensando em você e que te considero um verdadeiro amigo. Desses que nos ouvem falar sobre as bobagens mais aleatórias, choram conosco e riem conosco. Talvez você não me considere assim tão importante, não tem problema. Vou passar boa parte da nossa amizade afastado, enfiado em livros, ocupado com textos, lutando contra a gramática, mas de vez em quando talvez você possa passar para dar um olá e dizer o que tem achado disso tudo.
Se não puder, não tem problema. As garrafas vão continuar sendo jogadas ao mar, sempre que possível. Com notícias sobre esse único coqueiro e previsões sobre as tempestades e as marés. Hoje um peixe saltou diante de mim, é uma pena que eu não tenha linha ou anzol. A previsão de hoje é chuva e água de coco.
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