Sempre gostei da ideia de múltiplas realidades. Gosto de pensar que em multiverso infinito, nunca houve singularidade, dando espaço para que tudo se repita em todas as variações possíveis. E que em algum lugar, agora, tudo foi diferente e deu certo, não como uma fantasia, mas com materialidade, de forma que não me afeta, porém, existe em sua independência. O fato dessas realidades ser ou não ser acessíveis importa pouco, mas eu diria que de alguma forma elas estão conectadas, como uma grande teia de memórias que as vezes podemos acessar através dos nossos sonhos.
Acho que está meio cedo para falar sobre isso, eu ainda não tenho uma cerveja na mão e com certeza vocês não estão lendo isso em um bar, mas me traz certa paz saber que não importa qual seja a minha decisão nesta vida, outro eu, em outro lugar, tomou uma decisão diferente e que um de nós vai acabar estando certo.
Uma noite dessas sonhei com um casamento. Eu estava ansioso para chegar no local da festa, pois ia reencontrar um amigo com quem não falo já a alguns anos. É difícil dizer o que aconteceu entre nós. Daquelas amizades que parecem se distanciar, sem motivo aparente, deixando o alerta de que você em algum momento foi um tremendo filho da puta e nem se lembra.
No sonho, eu encontrei sua família em casa, mas eles viviam em um lugar diferente. Ao invés do castelinho que construíram aos poucos, empilhando andares a medida que a família crescia, ali eles viviam em um luxuoso apartamento, grande como a nave de uma igreja.
Quando cheguei estavam todos ali, animados e prontos para sair. Todos muito elegantes, bastante nervosos, absurdamente felizes. Eu, um tanto deslocado, fiquei sem graça, sem saber o que esperar, e me emocionei quando meu amigo me recebeu com todo carinho, dizendo que estava preocupado que eu não aparecesse.
Ali naquela outra história, eu estava ao seu lado assim como estive sempre que ele me chamou, não importando a distância.
Naquela realidade, as coisas aconteceram diferente. Não tanto para mim, mas bastante para ele. Além do apartamento luxuoso, das roupas e dos carros provarem que eles conseguiram algum dinheiro, a minha maior surpresa foi a oportunidade de rever o seu pai, que aqui deste lado da realidade vi falecer muito cedo.
Era um homem sério, muito educado, que sempre me tratou com gentileza quando eu passava a tarde na sua casa fazendo trabalhos de escola ou fingindo enquanto brincávamos no computador. Daquele lado da realidade, a idade tinha lhe caído bem. Seu cabelo começava a ficar cinzento, mas a seriedade tinha se abrandado o suficiente para ele fazer piadas e me dar um abraço, com aquele carinho de alguém querido que não vemos há muito tempo.
Era diferente vê-los tão felizes. A alegria sempre foi um bem raro na sua casa, sem que isso fosse de verdade culpa de ninguém. Seu pai, que faleceu jovem demais, vítima do próprio luto, definhando lentamente enquanto se entregava cada dia mais ao trabalho. A verdadeira tragédia aconteceu muitos anos antes, quando sua filha mais nova faleceu de uma doença rara, uma cicatriz que a família jamais cicatrizaria por completo.
Das tardes que passávamos juntos, o que eu mais me lembro era de suas gargalhadas. Ela ria até seus olhos se encharcarem de lágrimas, e pedia por favor para parar, agarrada a barriga, como se fosse sufocar, mesmo que as piadas não fossem tão engraçadas assim. Depois de sua morte, rir parecia errado.
Naquela outra história, nada daquilo aconteceu. De todas as realidades possíveis, naquela a família trocou o luto, pela celebração da própria vida e a filha mais nova, iria se casar. Lá estávamos, todos. Eles em suas melhores roupas, eu com um jeans batido e uma camisa amarrotada.
O resto do sonho foi uma série de encontros, conversas e aventuras, misturando histórias de dois universos, com despedida de solteiro e briga de bar, de uma forma tão familiar, que bem poderia ter acontecido aqui mesmo, ainda ontem. Mesmo que tudo fosse diferente, nós ainda éramos os mesmos.
No fim da noite, nos sentamos escangalhados no meio fio, dividindo uma cerveja choca, sem precisarmos dizer mais nada sobre tudo o que aconteceu. O silêncio era a nossa confissão de amizade.
Foi bom reencontrar esse companheirismo, mesmo que tenha sido em um sonho, foi bom porquê eu reconheci que em mim nada mudou e que me importo com ele da mesma forma como sempre me importei, nos melhores e nos piores momentos, até naquela realidade estranha, que não era a minha, mas deve existir em algum lugar. Como se, sem se importar com as mudanças sutis, algo permanecia estável unindo ambas as realidades e sabe-se lá quantas outras mais.
Também foi bom por saber que por aí existem memórias felizes que não dependem de nós, nas quais esse mundo e essa realidade são apenas um temor passageiro, um erro desagradável, um pensamento sombrio, algo que não deveria existir e que de certa forma, não existe.
Naquele outro universo, a filha mais nova se casou e seu pai envelheceu. Não houve pandemia, nem crise, nem ódio. A lama tóxica não cobriu Mariana. A chuva não afogou a Bahia. O Pantanal e a Amazônia continuam frondosos e fortes. Lá, a vida segue boa, célebre, plena, com as mesas fartas do almoço de domingo e a cozinha ficando pequena para a família que só cresce, entre filhos, netos, amigos e convidados. E tem uma cadeira esperando por mim, sempre que eu quiser bater a sua porta.
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