De todos os chefes que já tive nesta vida, o mais babaca certamente fui eu mesmo. O ano era 2005, não havia pandemia, o dólar custava menos de dois reais, eu fora esfolado vivo por uma agência de publicidade antes mesmo das cicatrizes da editora em que eu trabalhava antes se fecharem. Não conseguia me imaginar trabalhando para mais ninguém, não só pela sensação de exploração, mas pelo desdenhoso pé na bunda que eu tomei sem nenhum motivo que me fizesse sentido. Naquela época eu ainda acreditava que o padrão tivesse algum respeito pelo funcionário se ele trabalhasse nos fins de semana ou virasse a noite para cumprir os prazos. Eu tinha a chave da empresa, não podia ser assim tão dispensável, certo? Mesmo assim, tchau e sem benção. Não liguei muito. Entrei na copa, cuspi na marmita do sócio mais escroto, esfreguei o seu pão de queijo nas minhas nádegas e deixei um wallpaper mal-educado na tela do computador antes de ir embora.
No dia seguinte já estava trabalhando em uma editora onde precisava pentear o cabelo, bater ponto e fingir que me importava com algo. Felizmente não durou muito. Um amigo quis me passar um freela e eu embarquei no maravilhoso mundo do home-office, fazendo os meus horários, sem ninguém me enchendo o saco. O começo de uma nova fase.
Juro que imaginei que seria mais fácil. Tendo os meus horários sob controle, teria mais tempo para mim, certo? Poderia dormir melhor, me alimentar melhor, fazer exercícios e tirar um dia inteiro de folga. Esticar a segunda-feira na praia? Sem problemas. Eu merecia aquela folga.
Coloquei nos meus planos férias na Bahia. Era o mais longe que eu fui até então. Uma cidadezinha chamada Prado, no sul da Bahia que parecia a milhas de qualquer coisa exceto o mar. Eu tive memórias incríveis em Prado. Daquelas dignas de sessão da tarde, com a turminha do barulho causando altas confusões. Com dinheiro no bolso, eu queria repetir as lambanças e para ter o dinheiro no bolso, bastava trabalhar mais rápido.
Entrei na copa, cuspi na marmita do sócio mais escroto, esfreguei o seu pão de queijo nas minhas nádegas e deixei um wallpaper mal-educado na tela do computador antes de ir embora.
Já deu para adivinhar que eu nunca voltei para Prado, certo? Trabalhar em dobro se tornou trabalhar em triplo. O dinheiro chegava mais veloz do que eu podia gastar, até porquê eu realmente não tinha tempo para gastá-lo em nada. Logo estava trabalhando mais de cem horas por semana e quando pensava em ir ao cinema, para me distrair um pouco, o meu chefe me lembrava de que eu precisava daquele pé de meia, para a época das vacas magras.
Foi uma época bizarra. O mais próximo que eu chegava de outro ser humano era quando recebia ou entregava algo para os motoboys. Nas poucas vezes em que fui arrastado para encontrar os amigos, eu tamborilava na mesa do bar enquanto falava. Não sabia mais conversar sem digitar. Eu precisava sair de casa. Me matriculei em cursos, vi outras pessoas, encontrei tempo para sair e até arrumei uma namorada que acabou fodendo com meu psicológico de tal maneira que eu desisti de uma vez de ir para a Bahia e comprei uma passagem para Londres o que também acabou rendendo outra série de aventuras de sessão da tarde, com direito a uma eurotrip só com a roupa do corpo, que eu realmente não vou contar agora.
Quando voltei eu estava quebrado de todas as formas que podia imaginar. Não tinha clientes, nem emprego, nem dinheiro. O sofá dos meus pais era onde eu descansava o meu fracasso. Até que o meu telefone tocou e um amigo me ofereceu um emprego. Salário de merda. Horário de merda. Qualquer coisa só para escapar daquela inércia. Foi onde fui explorado por quase dez anos, até um chefe filho da puta me colocar na rua, com seis salários atrasados e nenhum puto no bolso para me lembrar da promessa que eu fizera de jamais confiar no patrão.
Faz cinco ou seis anos que sou meu patrão. CEO de mim mesmo. Commander in Chief da EU S/A e eu continuo sendo o pior chefe do mundo. Cumprindo horários malucos, trabalhando meses sem folga, às vezes com dificuldade até de colocar o pé na rua, com a diferença de que desta vez eu não sonhava com férias na Bahia ou intercâmbio em Londres. Queria apenas pagar o aluguel, pedir pizza no fim de semana e pagar os livros que teimavam em aparecer no meu cartão de crédito. Não tenho nenhuma ilusão. Não sou nenhum empreendedor, nem tenho discurso motivacional pronto sobre superar obstáculos. Sou só o diabo de um designer que tenta pagar as contas enquanto pensa como tudo isso poderia ter sido diferente e tenta tirar essas ideias da cabeça escrevendo, como se tivesse alguma importância. É esse o meu ato de rebeldia, contra mim mesmo: escrever enquanto devia estar trabalhando, só para irritar o merda do meu chefe. Esse babaca explorador que eu vejo todo dia no espelho.
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