Tenho acumulado metades. Refeições pela metade. Tarefas pela metade. Ideias pela metade. Textos pela metade. Tenho também vivido pela metade. Metade desperto, outra metade apagado. Escrevendo isso, apenas isso, bocejo três vezes. É o meu corpo buscando oxigênio para lutar contra a tentação constante de dormir só meia hora. Ele meio que me convence.
Metade de mim é cansaço, o que resta é ódio, e anda difícil lidar com essa longa depressão chamada Brasil. Sinto a vida passando com o dobro da velocidade enquanto as pílulas de felicidade perdem o efeito. Seria mais fácil se acreditasse em drogas, mas por algum motivo, acredito em arte. Minha religião é uma tela manchada que só me leva até metade do caminho para deus. Eu sei que parece não ter sentido.
Metade de mim é cansaço, o que resta é ódio”
Sobre a minha mesa tem uma xícara de café gelado pela metade. Foi o suficiente para me tirar da cama, mas pouco para devolver o espírito ao corpo. Sinto que parti de algum lugar, mas não consigo chegar ao meu destino, sem ânimo para curtir a paisagem por conta da ansiedade.
– Você emagreceu? – O psiquiatra pergunta, sem tirar os olhos do prontuário. – Sabe com quem você parece? Com aquele ator…
“Raúl Juliá”
– Raúl Júliá. – Ele confirma meus pensamentos.
As vezes sou o Bruno Mazeo, mas prefiro quando sou o Jeff Goldblum. Raúl Juliá é um bom meio termo.
– Sertralina de 100mg?
“Também. – quero responder – Mirtazapina. Diazepam. Lorezepam. Resperidona. Clozapina. Meia garrafa de uísque e cubos de gelo.”
Não digo.
– Sertralina de 100. – Aceno com a cabeça. Sabendo que ele vai se oferecer para fazer acupuntura na minha orelha e que vou ficar encontrando as sementes de mostarda coladas com esparadrapo no meu travesseiro por algumas semanas. Quero dizer que não, mas nem me importo. O processo todo leva 10 minutos. Ele sai do consultório sem responder o bom dia. Na recepção marco a próxima consulta para dali a dois meses por conta da pandemia.
No meio do caminho tenho uma ideia espontânea para um conto. Sou pego de surpresa. Sem papel e sem caneta. Prometo que vou me lembrar, sabendo imediatamente que vou esquecer. Tem sido assim nos últimos meses. Meias páginas, meias leituras, meias palavras, pensamentos que ficam pelo…
Desviando de uma merda de aparência assustadoramente humana, caminho uns passos pelo meio-fio: território dos bêbados e vagantes; dos caroneiros e dos que ganham a vida alugando o próprio corpo. É a água da sarjeta que lava os sonhos da gente.
Penso sobre isso. Sei que tem uma história ai em algum lugar. Chego a vê-la, quase compreendê-la, mas não quero pensar sobre isso. Só quero me arrastar para casa, dormir mais um pouco. O sono tem sido meu melhor passatempo e sei que isso não é bom.
Nessa minha obsessão pela ideia da metade das coisas, me vem o pensamento de que o sono é a meia morte. Sinto que devia agradecer, pela minha meia-vida. Vi estampado no jornal, com foto de meia página, a manchete que anunciava o resultado do meio mandato de um governo de absurdos. Duzentos e cinquenta mil mortes. Meia-metade de milhão. Gente que vivia por inteiro, que era amada por inteiro. Que tinha toda uma vida pela frente.
É a água da sarjeta que lava os sonhos da gente.”
É difícil manter a sanidade quando todos ao seu redor parecem ter feito um pacto de suicídio coletivo comemorado em festas clandestinas, viagens para o litoral e visitas aos avós idosos. Estamos todos meio sequelados nessa nossa jornada para o inferno.
Chegando em casa encontro meio pedaço de pizza sobre a mesa servindo de banquete para as formigas. Não me lembro de tê-lo deixado ali, minha memória tem funcionado do seu próprio jeito nos últimos tempos. Tomo coragem de jogar os restos no lixo e levar o prato até a pia. A água varrendo pelo ralo as formigas que tinham pensado ter se salvado. Outras almas a quem eu precisarei pedir desculpas, na minha expiação pelo inferno. Eu devia escrever sobre isso. Sobre tudo isso.
É o que eu faço, lentamente, tentando entender onde todas essas ideias se conectam. Murmurando baixo, a cadência da minha oração que vem em forma de parágrafos. Sentindo o sono me vencer. Fingindo que acredito na promessa idiota de que depois de meia-hora de sono, esses cacos de pensamentos vão se juntar em uma ideia completa. Estou mentindo. Sei que estou mentindo, mas é difícil não acreditar.
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