O que paga as contas
On November 23, 2020 | 0 Comments

Escrever não paga as contas (pausa dramática para vocês absorverem a ideia de que um autor deveria receber pelo seu trabalho). Nos meus melhores momentos financeiros como autor, eu não paguei para escrever e pode acreditar, isso já é bastante coisa. Na maior parte do tempo, minhas vendas são o suficiente para comprar papel e caneta, sem exagero. Para pagar as minhas contas eu vendi minha alma.

O que paga as contas é o meu trabalho como designer, o que eu já acho bastante impressionante no mundo em que nós vivemos. O design me sustenta a vinte anos, mas por algum motivo eu só me senti a vontade com o título de designer nos últimos dez. Nesse intervalo fiz outras coisas, tive outras formações, experimentei alguns trabalhos, mas no fim das contas tudo acaba voltando para o mesmo ponto. O design e o que eu faço com ele. Parece idiota que eu só tenha pensado em juntar o design e a literatura no último ano com os contos postais, mas as vezes o óbvio me escapa.

Semana passada eu furei a quarentena. Não tenho nenhum orgulho disso, mas é assim que funciona para todo mundo. Os boletos foram se acumulando ao longo do ano até chegar ao ponto de causarem tão mal para a minha saúde quanto a pandemia, então tomei coragem, dois banhos e uma dose extra de ansiolítico e sai de casa.

rollercoaster, looping, amusement
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Entrei no uber, dei bom dia, desinfetei as mãos, confirmei o caminho, desinfetei as mãos novamente, limpei minha caixa de mensagens pelo celular, reclamei do trânsito, ajudei a encontrar o número, desejei ao motorista um bom dia e me apresentei na portaria do salão onde estavam me esperando.

Bolsa lateral cheia de tranqueiras, incluindo uma lata de desinfetante aerossol, uma maçã, uma banana e um punhado de contos postais que tinha prometido entregar para o pessoal da equipe. Liberaram minha entrada, segui para o lobby, desinfetei as mãos pela terceira vez, dei bom dia aos que estavam esperando, um metro e meio de distanciamento, tudo como manda os novos protocolos de segurança. A porta do elevador abriu e quatro pessoas se espremeram ali dentro para chegar ao segundo andar. Fui de escada.

Na entrada do evento: desinfetar as mãos, medir a temperatura, formulário de segurança, exame de sangue para detecção de covid, banho de desinfetante aerossol, mascara e óculos de proteção, desinfetar as mãos pela milésima vez. Dei bom dia aos que já tinham chegado batendo o cotovelo como se fosse algo normal. Seria a minha rotina pelos próximos dias. O resto era o caos, a correria, a troca desenfreada de arquivos, os gritos e pedidos de socorro, o arrancar de cabelos e ranger de dentes, enquanto todos faziam o impossível para que tudo acontecesse da melhor forma possível. No fim do dia, recolher os cacos, costurar as cicatrizes, deixar a adrenalina sair do sangue e se preparar para o próximo dia.

Repita tudo quatro vezes, acrescente à jornada de 15 horas, mais quatro de outros trabalhos que eu ainda tentava entregar e some aos dois dias finais outras vinte e quatro horas de trabalho que eu tirei não sei de onde. Foi assim a minha semana. Não sei quantas horas trabalhei, nem conseguiria listar todas as coisas que eu fiz.

Tive um ano monótono, que eu consegui preencher com meus projetos pessoais e estava tendo um fim de ano atípico. Minha conta bancária agradecia. Era reconfortante saber que eu teria dinheiro para pagar o aluguel aquele mês.

Passei dos quarenta esse ano e pelo menos vinte deles eu passei mexendo com design e outras drogas mais pesadas. Design de livros, embalagens, anúncios, display de pontos de venda, fabricas mágicas de bolinhos adocicados e eventos. Nestes vinte anos, nunca vi dois dias iguais. Cada dia é um problema novo e você precisa ser rápido para encontrar uma resposta, mesmo que ainda não saiba a pergunta.

A semana acabou em uma longa quarta-feira que terminou as 10 horas da manhã da sexta-feira, quando eu entreguei o último projeto (com a reunião de apresentação já rolando), e pude finalmente dormir. Se a britadeira da obra ao lado deixasse, se a Meg furiosa com o pintor na porta da vizinha deixasse, se a adrenalina e o energético que ainda corria nas veias deixasse. Estava exausto e ao mesmo tempo elétrico. Fechar os olhos não foi simples.

Nunca pensei que sobreviveria vinte anos neste trabalho. Quando comecei, tive uma conversa com um produtor gráfico que me avisou dos riscos da profissão. Ele tinha duas pontes de safena e dizia que era uma carreira para jovens. Os velhos morriam ou mudavam de profissão. Aposentadoria não era uma realidade. Como todo jovem eu duvidei e achei engraçado, mas descobri que nessa carreira maluca, as pessoas não permanecem jovens por muito tempo. A publicidade disfarça a queda de cabelo, os relacionamentos destruídos, a depressão, úlcera e surtos psicóticos com abuso de drogas, alcoolismo, fliperama e a liberdade de trabalhar de bermuda.

Vinte anos depois, eu deitava na minha cama pela primeira vez nos últimos dois dias e olhava para o teto, ainda pensando em trabalho. Não pensava em como nada daquilo era absurdo, nem xingava as escolhas que eu tinha feito. Pensava apenas em como podia resolver um problema de projeto mais rápido, em como conseguiria entregar tudo melhor e também nos boletos que seriam finalmente pagos dali a alguns dias.

Em uma manhã desses minha namorada me mandou uma mensagem dizendo que estava aguardando a alma voltar para o corpo para sair da cama. Eu respondi dizendo que estava trabalhando sem alma naquela semana pois ela havia sido vendida.

Sei que parece absurdo e até um pouco amargo, mas a vida é exatamente assim: absurda e um pouco amarga, com pessoas que vendem a alma durante vinte anos para garantir a ração no pote dos cachorros, a escola do filho, a grana do aluguel da mãe que vive na Venezuela, a faculdade do marido, o feijão no prato. É importante não romantizar o sacrifício, nem vilanizar as escolhas de cada um, mas é preciso ser franco sobre o futuro para que cada um possa encontrar o seu caminho.

Sobreviver dentro desta loucura não estava nos meus planos e eu sempre procurei uma saída, mas existe uma certa maldição em ser muito bom em algo que um dia irá te matar. Você acha que aquele será o último ano, a última semana, o último job, o último dia e então percebe que esta a vinte anos naquela vida. Não importa o que eu faça ou o que eu queira fazer. Não posso nem dizer que odeio o meu trabalho pois aprendi a amar o que eu faço. Talvez eu seja masoquista, talvez esteja sofrendo da síndrome de Estocolmo, mas hoje em dia estou bastante certo de que essa merda vai me matar um dia. Até lá, eu já tenho outro projeto para entregar.


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