Como seria um Brasil governado pelas milícias, sem liberdades pessoais, vendido a multinacionais e com o meio-ambiente arrasado? Não Verás País Nenhum, é uma distopia brasileira, lançada por Ignácio de Loyola Brandão no inicio da década de 1980, período da reabertura política do Brasil, mas em muitos momentos temos a impressão de estarmos vendo o jornal de segunda-feira.
A história se passa após a ditadura militar, onde algo deu errado e o governo foi lentamente sendo substituído pelo Esquema. Uma organização ‘cilvitar’ que controla o país. Ou pelo menos o que resta do país. Grande parte do Brasil foi privatizada. Grandes partes do território nacional foram entregues as multinacionais para fazerem o que bem entendessem. Teve inicio um ciclo de extradição extremamente predatória que danificou permanentemente todo o ecossistema. Fome e sede se espalharam, com migrações em massa, enquanto as pessoas sufocavam em um calor escaldante como nada do que foi visto antes. E isso é só o cenário.
Souza, o narrador personagem, é só um pedacinho dessa engrenagem. Ex-professor de história, ele agora trabalha chegando números em uma tabela. Tem uma vida tranquila com a esposa em um apartamento simples e confortável e não passa grandes necessidades, graças a influência do sobrinho na política local. Não que sua vida seja fácil. A São Paulo de Souza é uma terra arrasada, dominada pelas milícias do Esquema, dividida em áreas de circulação que tentam organizar a superpopulação. Falta água para a maioria das pessoas e as pessoas se movimentam em filas imensuráveis, um passo após o outro, mas somente por onde o Esquema permitir. A poluição tem níveis absurdos. Toda comida é artificial. Não existem árvores ou animais. O que restou dos rios do Brasil são potinhos de água em um museu. A comida industrializada, o sol escaldante, a poluição cotidiana ou a radiação causada pela explosão da Usina de Angra, espalharam diversos tipos de doenças, espalhando pessoas deformadas por toda parte.
Vivendo alheio a tudo isso, Souza simplesmente aceita, com apenas uma leve indignação, até que um buraco surge em sua mão. A partir deste momento, Souza vai escorregando pela loucura do esquema em uma espiral surreal com personagens a cada instante mais bizarros, enquanto ele tenta entender tudo aquilo com o que ele apenas se conformava todos aqueles anos.
Souza não tenta se salvar, não é esse seu objetivo, nem existe algo que ele possa realmente fazer contra o onipresente esquema. Ele é só um velho que conheceu um mundo que não existe mais e se questiona o que virá depois, enquanto tenta compreender os motivos pelos quais sua mulher o deixou e a razão pelo qual ele parece não se importar muito com isso. O ex-professor vaga pela São Paulo, como um homem comum, assim como Winston Smith no livro 1984, porém, ele não tem maiores ambições e não acha que possa ter alguma grande vitória, como professor de história parece mais interessado em entender, questionar e registrar, nos alertando sobre o terrível futuro.
Quem assistiu Tropa de Elite ou O Mecanismo vai encontrar paralelos entre O Sistema, O mecanismo e o Esquema. É ele quem se tornou o governo oficial do Brasil, uma mistura de corruptos, militares, multinacionais e fanáticos dispostos a tudo em nome de um hipotético bem maior. Um inimigo sem rosto, sem nome, que está infiltrado em tudo ao redor através de decisões aleatórias, maquiagem de informações, forte repressão armada e polêmicos métodos para resolver de forma simples problemas complexos, como instituir um dia obrigatório de compras para aquecer a economia, ou criar grandes marquises para proteger os desalojados do sol escaldante. O esquema não é uma organização, é um organismo, que se revira, se golpeia, tenta se derrubar e se torna mais forte, enquanto a população ao redor se conforma, anestesiada, lidando com os problemas imediatos. A falta de água, comida ou teto.
Quando iniciei a obra de Loyola Brandão, não estava muito certo sobre o que iria encontrar. Por algum motivo eu esperava uma boa dose de realismo mágico, ou talvez uma parábola política sobre o que havia sido a ditadura militar, mas não é nada disso. Não Verás Pais Nenhum é uma distopia ao estilo 1984, Admirável Mundo Novo ou Nós, mas com questionamentos voltados inteiramente para a cultura nacional. Entendemos o Esquema sem precisar de muitos detalhes sobre ele, assim como entendemos a corrupção das autoridades, o preconceito contra o migrante, as políticas de distribuição de renda e a devastação sistémica de tudo ao nosso redor. Na medida em que avançava, os paralelos com as notícias do dia-a-dia iam se tornando a cada instante mias óbvios, tornando a leitura bastante dolorosa e dando ao livro uma assustadora aura profética.
É como se Loyola Brandão, lá nos distantes “Abertos oitenta”, tivesse sido capaz de visualizar e narrar o futuro, com um governo tomado por milícias e pela força do capital estrangeiro, essencialmente corrupto e sem o menor compromisso com o meio ambiente ou com a verdade. Não Verás País Nenhum é tão atual, tão preciso, que poderia ter sido escrito hoje. Terminar a leitura durante uma terrível onda de calor só me fez ficar ainda mais desesperado. Um livro que dificilmente agradará os apoiadores do governo atual.
Souza odeia as mulheres. Ele não diz nada disso durante todo o livro, mas a forma como descreve as personagens femininas com que se encontra vão lentamente nos contando uma história. Da vizinha que se pinta demais, passando pela garota que tem belas ancas, passando por uma cena constrangedora de encoxamento em uma fila, mas principalmente pela forma como ele descreve sua relação com Adelaide, sua esposa, a quem ora louva como a mulher mais perfeita do mundo, ora trata como uma criatura intragável e insípida e que aos poucos vamos descobrindo como uma pessoa que foi reprimida pelo casamento e abandonou os próprios sonhos. Souza não sabe nada a respeito da própria mulher e a cada descoberta que ele faz, vai se tornando uma pessoa pior. Sua decadência mental vai se alinhando a sua decadência física enquanto ele vai ficando cada vez mais repugnante. As cenas envolvendo mulheres na minha opinião se tornaram as mais incômodas do livro, felizmente são poucas, mas são brutas.
Se você não gosta de spoilers, sugiro que pule esta parte, pois comentarei de alguns trechos específicos da obra que podem tirar um pouco da graça da sua leitura. Se você não liga para esse tipo de coisa, pode continuar.
Tudo ao redor de Souza vai apodrecendo enquanto ele decai também, ou é isso o que imaginamos a medida em que vemos ele se transformar do pacato ex-professor de classe média em um dos destituídos que vagam pelas ruas de São Paulo. Do pobre funcionário público que após ter uma estranha doença é abandonado pela mulher sem grandes explicações e se torna esse ser questionador, sem a pedra fundamental que lhe conserva a rotina. Solitário, um tanto suicida e trágico, mas é no final que temos uma surpresa, quando Souza quebra a quarta parede e passa a falar diretamente conosco, que estamos em um tempo diferente do dele, explicando que o que ele está fazendo é nos alertar sobre o que pode vir a acontecer. Descobrimos então que Souza não é um narrador confiável, ele mentiu para nós pelo menos uma vez e confessa isso ao dizer a verdadeira razão pela qual sua mulher o deixou. Quando faz isso, já não importa mais. Nem para ele, nem para nós.
Ignácio de Loyola Brandão (31 de julho de 1936) é um dos maiores nomes da literatura nacional, sem sombra de dúvida. Sua obra abrange contos, crônicas, romances, biografias, livros de viagem e infantojuvenis. Grande parte do seu trabalho gira me torno das questões ambientais, mas também fala sobre a dificuldade de comunicação e a perda da própria identidade. Em 2019 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Fonte: Itau Cultural
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