“Um vulto de branco é mais assustador se for um fantasma ou um membro da Ku Klux Klan?”
H. P. Lovecraft é um nome que não deveria precisar de apresentações, um dos pais do chamado Horror Cósmico, foi o criador de Cthullu, da cidade de Arkhan e do Necronomicon, só para citar alguns dos nomes mais populares da sua obra. O que quase sempre é ignorado é que ele era um racista filho da puta.
Os defensores de H. P. Lovecraft vão tentar lutar por sua honra, mas isso não importa nem um pouco, pois não vamos falar de Lovecraft, mas sim da obra de Matt Ruff, que parte dos Mythos Lovecraftianos para criar Território Lovecraft (Lovecraft Country) publicado no brasil pela Intrinseca e que ganhou uma adaptação para se tornar uma série da HBO, sob a batuta de Jordan Peele (Corra (2017), Nós (2019)) se nada disso te convenceu a comprar o livro ainda, segura que tem mais.
A estrutura do livro é uma Fix-up, uma série de contos interligados para formar um romance, e contam a história de Atticus, ex-militar e fã de ficção científica na década de 1950 que acaba sendo envolvido nas conspirações de uma sociedade secreta. Esse enredo poderia ser só mais um clichê retirado dos livros que Atticus coleciona mas a alteração de um simples detalhe faz toda a diferença para a história: Atticus é um rapaz negro. E se tem uma coisa que ele teme mais do que deuses esquecidos surgindo de dobras espaciais para acabar com a humanidade, é a luz da viatura da polícia mandando ele encostar em uma estrada deserta.
“Quilômetro de Jim Crow: Unidade de medida, exclusiva aos motoristas negros, composta tanto de distância física quanto de quantidade variáveis de medo, paranoia, frustração e indignação. Sua natureza amorfa torna impossível calcular com acerto a duração de uma viagem, e sua violência põe constantemente em xeque a saúde e a sanidade dos viajantes.
Guia de viagem do negro precavido, edição do verão de 1954
Território Lovecraft presta uma longa lista de homenagens a autores de literatura pulp, de horror, fantasia e ficção científica apontando o dedo sempre que possível no racismo implícito ou escancarado de suas obras. Parte do encantamento da obra é justamente o conflito que os personagens sentem ao serem fãs de um gênero cheio de segregações.
Cada um dos oito contos do livro deslizam pelas aventuras de Atticus que, sem intenção alguma, arrasta a sua família e os amigos para as tramoias da família Braithwhite e a Ordem da Aurora Ancestral e nós assistimos um dos pontos fortes de Matt Ruff: sua capacidade de criar personagens que são ao mesmo tempo mundanos e extremamente interessantes para lidar com os desafios sobrenaturais ou raciais (as vezes os dois).
Ao mesmo tempo que nos fascina com um universo coerente e rico, Ruff nos brinda com uma verdadeira aula de história e a violência ao qual os negros são submetidos todos os dias. No decorrer do livro não demora muito para você ficar com mais medo pelos personagens quando eles precisam pedir algo corriqueiro a uma mulher branca do que quando eles participam de um ritual para invocar deuses anteriores à criação.
A edição da editora Intrinseca é fabulosa. Respeita a arte original da capa com relevo e tudo e tem pouquíssimos erros em suas páginas. A tradução de Thaís Paiva foi cuidadosa e merece todo o carinho do mundo. Livro para ter, guardar, reler e presentear.
“Ao sorver o ar pela primeira vez nesta minha nova vida, percebi que me tornara mais perverso, dez vezes mais perverso do que antes, vendido como escravo à minha maldade original; e, naquele momento, o pensamento me revigorou e inebriou como vinho.”
Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro
Território Lovecraft é um livro que precisava ser escrito. Traz a discussão sobre a visão que a ficção científica tem sobre os negros e o motivo mais que justificável pelo qual a população negra tem ranço do gênero, conseguindo ao mesmo tempo divertir e ser informativo. A minha única questão a respeito do livro é: será justo que uma obra com potencial para tamanha repercussão e transformação social, tratando de temas tão delicados quanto racismo, representatividade e segregação, tenha sido publicada por um autor branco? Deixe os seus comentários.
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